Habitação social na América Latina: trabalhar com (ou contornar) o sistema

Dando sequência à série de artigos de Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy y Ernesto Philibert-Petit sobre o estudo da habitação social na América Latina, nesta ocasião os autores discutem os processos de trabalho e o sistema operativo da construção. 

13 - Habitação Social na América Latina: Trabalhar com (ou contornar) o sistema

Trabalhando contra o sistema existente

 O atual sistema de planejamento e de construção cria e perpetua uma dependência que é difícil — e, na maioria dos casos, impossível — de quebrar. Ao aumentar os padrões construtivos além do ponto no qual eles podem ser, de maneira razoável, satisfeitos pela auto-construção, ele muda inteiramente a indústria da habitação, que passa de local e de pequena escala, a funcionar somente em grande escala. Os padrões para a construção desenvolveram-se em resposta a ameaças sérias e reais à saúde e à segurança. No entanto, como muitos outros sistemas tecnológicos, suas conseqüências não pretendidas não são triviais e podem ser desastrosas. Isto está acontecendo atualmente na reconstrução da região do Golfo do México, após o furacão Katrina.

O sistema em funcionamento trabalha tanto para beneficiar burocratas do governo quanto grandes empreendedores, que estão freqüentemente ligados por apoio mútuo. Mas o que pode ser visto como benefício para um sistema comercial ou de governo pode significar desastre para outro, e maior, segmento da sociedade. Um de nós (AMD) tem defendido, em relação à reconstrução a pós a devastação do Katrina, o uso de estratégias que permitam o florescimento dos mesmos processos sociais que ocorriam anteriormente. Estas estratégias enfrentam desafios desencorajadores devido à presença dos atuais sistemas de construção, financiamento e regulação.

Muitas das casas destruídas no furacão, particularmente aquelas dos bairros de baixa renda, eram auto-construídas e não acompanham os atuais códigos ou padrões de financiamento. O tecido urbano existente era o produto de animados processos de auto-construção ao longo de gerações, com a vantagem de que ele não era baseado em dívidas. Esta era uma sociedade de proprietários que eram livres de dívidas, cujas vidas poderiam ser estruturadas ao redor de atividades de suas escolhas. Aquelas casas estavam fora do sistema, porque devido à sua construção em desconformidade com os códigos as tornavam impossíveis de serem financiadas. O sistema agora requer um contrato de dívida, já que os novos padrões de construção não podem ser alcançados sem a intervenção comercial. Na maioria dos casos isto significa que o governo deve intervir e construir a habitação social, resolvendo um problema que ele próprio criou. E o ciclo de conseqüências não desejadas continua. 

Citando Duany (2007): “A barreira criada por desenhos, permissões, construtores, inspeções — o profissionalismo disto tudo — elimina a auto-construção. De alguma maneira deve haver um processo através do qual as pessoas possam construir casas simples, funcionais para si mesmas, seja por construção própria ou por troca (escambo) com outros profissionais. Deve haver projetos gratuitos de casas que possam ser construídas aos poucos e que não requeiram um arquiteto, nem licenças ou inspeções complicadas; deve haver padrões técnicos baseados no senso-comum. Sem isto, haverá o desconforto do débito para todos. E débito, no Caribe, não significa apenas dever dinheiro — é a eliminação da cultura que emerge do lazer.”

Embora isto possa ser “lazer” nos moldes dos padrões da classe média, isto representa uma vida difícil para um tecido cultural fértil e vibrante que é simplesmente negligenciado (mesmo que seja uma parte direta dela) pela economia convencional. Os habitantes da moderna classe média, em todo o mundo, consideram um sistema dominado pelo débito, como dado: muito do tempo de trabalho das suas vidas é gasto apenas para pagar o financiamento da moradia. De fato, o sistema funciona impedindo outras opções para obter um teto sobre a cabeça. A classe média consegue liberação do sistema financeiro somente após a aposentadoria, quando o financiamento de 30 anos é finalmente pego. A habitação erigida por auto-construção, com dinheiro e troca (escambo) é uma fuga deste sistema, e é visto pelo governo e pelos grandes empresários como uma ameaça a sua hegemonia. Este é um problema estrutural, não uma intenção malévola. A dívida é a chave, mas ela é apenas uma variável de um sistema interconectado.

Não é fácil implementar este tipo de inovação, porque na maioria dos países e regiões, já existe um sistema bem estabelecido que produz, rigidamente, habitação social inumana (mas que ele acredita, ao contrário, ser uma solução iluminada e progressista). Muitas vezes nos nossos projetos a primeira coisa a ser feita é começar a estudar o sistema de produção habitacional, para superá-lo. Estes sistemas são criados por uma engrenagem composta de burocracias, especialistas, instituições financeiras, entidades políticas, etc. É possível construir os tangíveis físicos, mas não nos sistemas. Há muito que precisa ser superado, mas que resistirá a ser abandonado.

Nós (o grupo de urbanistas) não podemos estar diretamente envolvidos nesta estratégia, que é a responsabilidade do cliente e das organizações de apoio. As entidades locais devem resolver problemas de como proceder e estabelecer as alianças que sustentarão o projeto, onde nós estaremos agindo como catalisadores da mudança. Embora enfrentando a oposição do resto da burocracia, uma pequena parte, ou várias unidades independentes dentro do governo, poderiam estar promovendo nosso projeto. A maior parte do tempo, os problemas com habitação social inovadora, não são as soluções técnicas, sociais ou mesmo financeiras: elas são quase sempre políticas.

Trabalhando com o sistema existente

Você pode tentar forçar mudanças na abordagem do desenho, e alguma coisa boa pode vir daí, mas só afasta você do processo. Um projeto tende a ser uma luta de poder que tira tempo e esforço da construção. Alternativamente, podemos tentar cooperar com o sistema, juntando financiadores e facilitadores de uma maneira inesperada. Mas isso vai requerer que nós reconheçamos estar trabalhando com um sistema existente como um diferente tipo de problema, não linear, mas multi-variado e “cultural”. É necessário estar mais enraizado no sistema de operação local (uma cultura forte existente) para resolver aqueles problemas, para ter alguma chance de ver onde estão as alavancas (para podermos acioná-las para efetuar a mudança) e ver como as decisões são tomadas, nos vários níveis.

Na maioria dos casos, uma estratégia de sucesso vai combinar aspectos de “trabalhando com o sistema” com “reformando o sistema a partir de fora”. Ao fazer uma avaliação, mostrar as limitações críticas que nós encontramos no sistema de produção existente é o primeiro e mais determinante dos passos a serem dados. Então, deveríamos trabalhar para negociar uma forma de “atalho” que considere, desde o início, as limitações encontradas antes de tentar desmantelar, completamente, o sistema existente. Pode ser realmente necessário transformar radicalmente o sistema existente, mas este é um problema separado do desenho e da construção do tecido urbano, e nós não desejamos gastar todas as nossas energias lutando contra o sistema. Por outro lado, se não forem possíveis atalhos, vai haver pouca alternativa que não seja pressionar por uma reforma do sistema.

Alexander (2001-2005, livro 2, página 536) mostra sua própria experiência com este tipo de luta. Ao longo de um período de trinta anos gerando projetos, ele se deu conta que o maior problema é que a implementação exige muito. “Nas nossas primeiras experiências, nós freqüentemente entramos em situações inacreditáveis para fazer um novo processo ser implementado, e funcionar. Mas a quantidade de esforço que nós tivemos que fazer para tê-lo funcionando — a verdadeira fonte do nosso sucesso — era também o lado fraco do que nós conseguíamos. Em muitos casos, a magnitude do esforço especial que tinha que ser feito para sustentar um novo processo era massivo — grande demais, para facilmente ou razoavelmente, ser copiado”

Alexander, em cada um dos casos, teve sucesso substituindo o sistema existente combinando o procedimento, o processo, a atitude e as suas regras de funcionamento com um sistema inteiramente diferente. Mas o esforço requerido para mudar o sistema inteiro, mesmo nos casos em que ele conseguiu, não era facilmente replicável. Ele conclui que aqui, como em qualquer experimento científico, é a REPLICABILIDADE que é importante, não a singularidade da ocorrência. Se o processo não é facilmente replicável, em última instância, ele não é útil. Então, se um método de produção tem tanto componentes que são totalmente diferentes do sistema que funcionava anteriormente, ele não é facilmente acomodável dentro do velho método, não pode, então, ser copiado amplamente em regiões onde a velha metodologia ainda é aplicada.

Uma analogia genética, proposta por Alexander, sugere caminhos para ter sucesso no longo termo. Um processo apresentado como um sistema complexo, completo (como um código genético para um organismo inteiro) requer que sua implementação seja, ou inteira, ou nenhuma. Neste caso, o sistema existente de implementação deve mudar para permitir o projeto ser construído. Se, por outro lado, nosso projeto é apresentado (e entendido) como uma coleção de peças semi-independentes, cada uma das quais pode ser implementada facilmente, então, há uma chance maior de que uma ou mais das peças se juntem. Grupos pequenos de operadores, desta forma, poderiam aplicar cada peça do processo, sem requerer o apoio do sistema. Alexander tem esperança que peças de metodologia copiadas facilmente irão se espalhar independentemente e que, eventualmente, este processo de difusão levará, ao longo do tempo, a um “sistema operacional” inteiramente novo.

Versão anterior deste artigo foi apresentada por NAS como uma palestra no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006. Publicado em URBE: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Vol. 3 No. 1 (Janeiro/Junho 2011), páginas 125-136.

Tradução para Português: Lívia Salomão Piccinini.

Bibliografia

  • Christopher Alexander (2001-2005) The Nature of Order: Books One to Four (Center for Environmental Structure, Berkeley, California).
  • Andrés Duany (2007) “How do we save the Crescent City? Recreate the unique building culture that spawned it”, Metropolis, 14 February 2007.

Sobre este autor
Cita: Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy & Ernesto Philibert-Petit. "Habitação social na América Latina: trabalhar com (ou contornar) o sistema" [Vivienda Social en Latinoamérica: trabajar con (o eludir) el sistema] 23 Jul 2019. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/921589/habitacao-social-na-america-latina-trabalhar-com-ou-contornar-o-sistema> ISSN 0719-8906

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