Da modernidade aos muros de ar: três pavilhões do Brasil na Bienal de Veneza

Desde 1980, com a primeira exposição dedicada exclusivamente à arquitetura, intitulada A presença do passado e dirigida por Paolo Portoghesi, a Bienal de Veneza se posicionou como um dos pontos de inflexão da história da arquitetura contemporânea. Desde então, 16 edições já ocuparam os espaços do Giardini e do Arsenale, abordando temas que vão dos elementos fundamentais da arquitetura ao futuro da disciplina.

O Brasil é um dos países que têm um pavilhão nacional próprio no Giardini e, à diferença das nações que não dispõem de tal privilégio e têm que organizar suas mostras em espaços diversos de Veneza, pode orquestrar suas exposições neste local definido. Revisitaremos aqui as três últimas participações nacionais, que trataram os temas da modernidade (2014), especificidade (2016) e imaterialidade (2018), em resposta às demandas dos curadores gerais de cada edição da Bienal.

Em 2014 a organização da Bienal finalmente conseguiu convencer Rem Koolhaas a assumir o posto de curador geral da mostra. O tema Fundamentals proposto pelo holandês tratava das "coisas que os arquitetos não podem ignorar" e resultou em uma grande exposição e catálogo sobre elementos básicos (portas, lajes, escadas etc.) da arquitetura. O tema que Koolhaas delegou às participações nacionais era Absorbing Modernity 1914-2014, isto é, uma revisão de como diferentes contextos nacionais absorveram a modernidade no último século e como, eventualmente, mantiveram elementos tradicionais.

A contrapartida brasileira, curada pelo diplomata André Aranha Corrêa do Lago, levou o título Brasil: Modernismo como Tradição. Com 50 arquitetos e 180 projetos, a mostra apresentou uma evolução cronológica da arquitetura no país, organizada por tipos de edifícios, incluindo habitações coletivas, habitações individuais, edifícios governamentais, escolas, urbanismo, paisagismo, pavilhões e centros culturais.

Brasil 1914 - 2014: modernidade como tradição. Veneza, 2014. © Nico Saieh

Explorando a singularidade do Brasil como um país cuja identidade nacional - inclusive arquitetônica - foi construída sobre as bases da modernidade, a curadoria da exposição evidenciou o moderno como fundamental para a história da arquitetura nacional. "O Brasil é um dos países que absorveram de forma mais interessante os preceitos da arquitetura moderna, o que contribuiu para o fortalecimento da identidade nacional", afirmou Corrêa do Lago. "Ao contrário de outros países que construíram, ao longo dos séculos, uma arquitetura típica nacional - reconhecível de forma quase caricatural pelos outros povos – aquela que é conhecida como 'arquitetura brasileira' não é a do passado, mas a moderna", concluiu.

Brasil 1914 - 2014: modernidade como tradição. Veneza, 2014. © Nico Saieh

Alinhada com o tema proposto por Koolhaas, a participação nacional de 2014 enfocou o passado e as manifestações concretas da arquitetura como seus aspectos fundamentais. Embora reunisse obras de arquitetos ilustres de nossa história - entre os quais Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx, Affonso Reidy, Lina Bo Bardi, Lelé e Paulo Mendes da Rocha - pode ter deixado escapar a chance de mostrar como a tradição moderna se desdobra em possibilidade de futuros.

Brasil 1914 - 2014: modernidade como tradição / Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza 2014

Em nossa cobertura da 14ª Bienal de Arquitetura de Veneza - que tem como curador Rem Koolhaas e como tema geral Fundamentals - não podíamos deixar de trazer até nossos leitores e leitoras detalhes sobre o Pavilhão do Brasil, que se desenvolve em torno do tema " Modernidade como Tradição" (Modernity as Tradition) e tem como curador o diplomata e crítico de arquitetura André Aranha Corrêa do Lago.

De uma edição de caráter definido e introspectivo (afinal, Fundamentals tratava de objetos essencialmente arquitetônicos), a Bienal seguinte foi organizada a partir do mote Reporting From the Front, escolhido pelo curador daquela edição, Alejandro Aravena. De acordo com o chileno, o tema - muito mais abrangente e indefinido que o anterior - seria uma investigação sobre o papel dos arquitetos na luta para melhorar as condições de vida das pessoas em todo o mundo.

"Nós gostaríamos de aprender com a arquitetura que, apesar da escassez dos meios, intensifica o que está disponível em vez de reclamar sobre o que está faltando", afirmou Aravena no anuncio oficial do tema da 15ª Exposição Internacional de Arquitetura. "Nós gostaríamos de entender quais ferramentas de projeto são necessárias para subverter as forças que privilegiam o lucro individual sobre o benefício coletivo, resumindo Nós para apenas Eu", concluiu.

Em outras palavras, aquela edição enfocou arquiteturas que trabalham com as limitações impostas pela falta de recursos e projetos que subvertem o status quo para produzir arquitetura para o bem comum. A participação brasileira daquele ano, com curadoria de Washington Fajardo, se intitulava JUNTOS e reunia quinze projetos realizados em diversas regiões do país que abrangiam diferentes abordagens do tema definido por Aravena.

JUNTOS. Veneza, 2016. Image © Laurian Ghinitoiu

A mostra brasileira buscou dar visibilidade a histórias de pessoas e grupos que lutam para alcançar mudanças na passividade institucional das grandes cidades do país. “A mostra é uma composição dessas trajetórias e parcerias, do processo do encontro do ativista, do lutador, com o arquiteto e com a arquitetura, tornando-se imanados pela elaboração do novo espaço", afirmava Fajardo no texto oficial da participação do Brasil. 

JUNTOS. Veneza, 2016. Image © Laurian Ghinitoiu

Deslocando o foco dos edifícios para a cidade, dos objetos arquitetônicos para os processos e ações que acontecem no espaço urbano, a mostra brasileira afirmava a amplitude do campo de atuação da arquitetura. No entanto, ao destacar a especificidade de alguns poucos projetos e atuações, correu o risco de levar à Veneza um recorte insuficiente da produção contemporânea brasileira que "luta para melhorar as condições de vida" dos brasileiros. 

JUNTOS: Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza 2016

Como parte da cobertura do ArchDaily Brasil na Bienal de Veneza deste ano, compartilhamos a seguir informações sobre o Pavilhão do Brasil, que reúne quinze projetos e iniciativas de diferentes regiões do país e que tem curadoria de Washington Fajardo. A Casa da Flor é uma arquitetura onírica erguida a partir do sonho de Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985).

Ainda mais aberto e muito menos preciso que Reporting From the Front, o tema da Bienal de Arquitetura de Veneza de 2018 foi FREESPACE. Segundo as curadoras Yvonne Farrell e Shelley McNamara do escritório Grafton Architects, FREESPACE "abrange a liberdade de imaginar, o espaço livre do tempo e da memória, unindo passado, presente e futuro juntos, construindo sobre camadas culturais herdadas, tecendo o arcaico com o contemporâneo."

"Estamos interessadas em ir além do visual. Estamos interessadas na coreografia do cotidiano. Vemos a terra como cliente e a arquitetura como o manejo de seus recursos", afirmaram as curadoras na conferência oficial do anúncio do tema. Nesse sentido, a proposta de Farrel e McNamarra vai além da de Aravena ao abrir espaço a representações tão diversas quanto o próprio cotidiano e às histórias particulares de cada contexto e arquitetura - sem se limitar àquelas que lutam para subverter o status quo

A participação do Brasil nesta edição foi encabeçada pelo grupo formado por Laura González Fierro, Sol Camacho, Gabriel Kozlowski e Marcelo Maia Rosa e se intitulou Muros de Ar. Com duas frentes expográficas - uma composta por 17 projetos de diferentes regiões do país, selecionados a partir de uma chamada aberta, e outra formada por uma série de grandes desenhos cartográficos que abordam diferentes aspectos da urbanização do país através das lentes da arquitetura - a mostra buscou "investigar o muro como um elemento da arquitetura, da cultura e da identidade brasileira, e vê no ato de sua transposição um convite ao convívio e à multiplicidade."

Muros de Ar. Veneza, 2018. Image © Imagen Subliminal

A participação brasileira em 2018 tira proveito da indefinição de Freespace para tratar de assuntos que extrapolam os limites convencionais da arquitetura em termos de escala e materialidade, voltando os olhos para as "barreiras imateriais que são erguidas entre pessoas ou bairros, e os processos de urbanização do Brasil em uma escala continental". Em outros termos, a amplitude do tema proposto pelas arquitetas irlandesas se desdobrou na abertura do foco da mostra apresentada no pavilhão do Brasil. 

Muros de Ar. Veneza, 2018. Image © Imagen Subliminal

Do patrimônio moderno às cartografias de escala continental, as representações brasileiras em Veneza de 2014, 2016 e 2018 vão gradativamente se dissolvendo, perdendo contornos claros e ganhando escala. Em parte, evidentemente, em resposta ao tema proposto pelos curadores gerais de cada edição, mas também pela própria natureza de algumas questões emergentes (imaterialidade, virtualidade, fugacidade etc.) na arquitetura e na cultura contemporâneas. 

Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza 2018: Muros de Ar - Os limites dos objetos

O capítulo Os limites dos objetos aborda o tema Muros de ar na escala das intervenções arquitetônicas e urbanas, numa tentativa de medir a capacidade da produção brasileira recente para mediar relações conflituosas entre os domínios público e privado.

Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza 2018: Muros de Ar - Cartografias

O conceito e título Muros de ar foi pensado para responder à proposta Freespace, das curadoras Yvonne Farrell e Shelley McNamara, como uma provocação capaz de questionar: 1. as diferentes formas de muros que constroem, em diversas escalas, o território brasileiro; 2. as fronteiras da própria arquitetura em relação a outras disciplinas.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Da modernidade aos muros de ar: três pavilhões do Brasil na Bienal de Veneza" 22 Mai 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/917259/da-modernidade-aos-muros-de-ar-3-pavilhoes-do-brasil-na-bienal-de-veneza> ISSN 0719-8906

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