Técnica e Aparência: o Desafio do Presente / David Leatherbarrow

Em 1960 Reyner Banham concluiu sua Teoria e Projeto na Primeira Era da Máquina com a seguinte observação:

  • Pode bem ser que o que temos até então entendido como arquitetura, e o que estamos começando a entender de tecnologia, são disciplinas incompatíveis. O arquiteto que propõe correr com a tecnologia sabe que estará em rápida companhia, e que, a fim de acompanhar o ritmo, pode ter que emular os Futuristas e descartar toda sua herança cultural, incluindo o vestuário profissional pelo qual ele é reconhecido como arquiteto. Se por outro lado, ele decide não fazê-lo, pode descobrir que a cultura tecnológica decidiu continuar sem ele. É uma escolha que os mestres dos Anos 20 falharam em observar até que o fizeram por acidente, mas é o tipo de acidente que a arquitetura pode não sobreviver uma segunda vez.1

 

Tal alternativa pode haver parecido dramática, talvez até extrema, para os leitores contemporâneos de Banham. O Edifício Seagram de Mies van der Rohe havia sido concluído apenas dois anos antes, em 1958. Apesar de alguns depreciadores, como Lewis Mumford, muitos críticos julgaram-no uma grande conquista como solução tanto urbana quanto tecnológica. Com esse edifício em mente, os comentários de Banham pareceriam ser exagerados.

Em muitos de seus projetos, começando por seus arranha-céus de vidro dos anos 20 e novamente em suas últimas torres, Mies tratou de encontrar um caminho que não fosse tão dualista como aquele sugerido por Banham. Ele repetidamente afirmava que a tecnologia não era um fim em si mesmo, mas sempre entrelaçada com seus valores metafísicos e simbólicos. Em plena conformidade com argumentos surgidos em seus escritos, seus projetos são uma evidência da tentativa de transformar os fatos da produção moderna no ato do edifício símbolo.

É bem sabido que em “Arranha-céus” Mies fala de altos edifícios em construção como “reveladores de consistentes pensamentos construtivos”; além disso, ele também enfatizou a necessidade dessas estruturas de demonstrar algo mais que habilidade técnica. Para Mies, alcançar esse “algo mais” significava que o arquiteto “teria que desistir da tentativa de resolver um novo desafio com uma forma tradicional; e sim que deveria tratar de dar forma à nova problemática além da natureza desta problemática”.2 Dado o fato que as estruturas de aço estavam agora carregando o peso do edifício, a pele externa não precisava mais ser estrutural. Em arranha-céus, portanto, o uso do vidro proporcionou novas oportunidades e exigiria novas aproximações.

Os apartamentos de Lake Shore Drive e o Edifício Seagram de Mies representam soluções que são bastante diferentes em natureza. Os pisos e colunas do primeiro são recobertas de metal, nas quais os montantes são soldados, enquanto o segundo tem uma cortina de vidro que é disposta em frente da estrutura principal. O Edifício Seagram tem uma maior continuidade da pele –vidro com pigmento marrom– por sua fachada, a membrana externa mascarando a estrutura por detrás.3 O volume simples do edifício aliado à sua superfície exterior uniforme lhe confere uma sublime ou monumental presença em seu contexto.4 (O edifício também poder ser interpretado como representativo da Seagram Corporation, de seu papel no mercado e na vida contemporânea.) Que sua expressão monumental não foi o resultado de somente considerações técnicas é aparente no fato que Mies ajustou a articulação da estrutura para preservar sua uniformidade e a simplicidade volumétrica do edifício. A escolha do bronze e vidro pigmentado contribuíram a este efeito de solenidade melancólica. Mies fez ajustes similares para a fachada do Lake Shore Drive, reconhecendo o papel do efeito do visual do edifício como decisivo na concepção de seus sistemas de revestimento. Isto explica sua afinidade com Berlage, assim como sua similaridade um tanto paradoxal com a abordagem de Venturi e Scott Brown. Contudo, embora tais edifícios fossem expressivos da essência tecnológica da época, eles também eram para ser vistos em termos simbólicos, contando com as qualidades do vidro de maneiras que relacionam diretamente transparência a preocupações com o contexto, cultura e circunstância.

 

DISTRAÇÃO

Desde o primeiro período de sua obra em diante, Mies se manteve preocupado com as reflexões produzidas por superfícies envidraçadas. Nos edifícios de Lake Shore Drive, esse jogo de luz e sombra resultou numa parede que apresenta aparências cambiantes através do curso do dia e do movimento a seu redor. Tal edifício é a uma vez uma simples e sombria massa prismática e ao mesmo tempo um locus de uma série ilimitada de efeitos espectrais, que contribui tanto para sua “desaparência” quanto para sua aparência. Aqui é útil recordar os argumentos feitos por Siegfried Kracauer na sua discussão sobre os cineteatros de Berlim, onde introduziu a experiência de “distração” –uma forma especial de mirar, focada não em figuras permanentes nem em objetos inteiros, mas em ocorrências menores ou locais, e portanto atento à efemeridade do fenômeno urbano.5 A densidade urbana fez essa forma de mirar possível, assim como fez a sociedade em massa e a comunicação em massa. O jogo de reflexos ao longo da cortina de vidro do Edifício Seagram poderia ser entendido como arquitetura da “distração”. Visto deste modo, seu vidro e bronze são manifestações não somente de razões técnicas mas também de condições culturais e urbanas de um tempo –condições que reconheceram o movimento como uma experiência chave. Edifícios vistos dessa maneira “distraída”, como em filmes, apresentam figuras que são variavelmente preto em branco, opaco-transparente-reflexivo, ou nitidamente delineadas e ambíguas. Sua obscuridade, opacidade, e massa não apenas os fazem sublimes, ou “formidáveis”, mas também os confere um senso de monumentalidade, do passado, e de história. Sua luminosidade, refletividade, e ambiguidade de superfície, entretanto, os confere contemporaneidade, até mesmo um futuro, porque reconhecem a era do progresso tecnológico.

Nos anos e décadas após a construção do Edifício Seagram, muitos edifícios corporativos similares foram erguidos em centros metropolitanos. Em certo sentido, essa imitação poderia ser vista como uma vindicação às asserções de Mies sobre o caráter tecnológico da época: condições que seus edifícios foram destinados a expressar sustentaram o desenvolvimento e a produção de inúmeros outros. Mas na maioria destes recentes edifícios, o projeto foi prioritariamente regido por imperativos técnicos e econômicos. Pouca atenção foi destinada a questões de monumentalidade, e muito menos para os elementos de distração. E com a negligência à monumentalidade veio a indiferença a considerações com a história, e a expressões anteriores do caráter da época.

Em 1962, alguns anos após a conclusão do Edifício Seagram, José Luiz Sert discutiu a influência dos muros cortina para edifícios corporativos, que ele via como uma evidência da “Americanização” nas mais remotas cidades. Sert rejeitou essas estruturas como “fachadas do anonimato” desenhadas para servir ao burocrata comum independentemente de seu trabalho ou de suas preferências por privacidade, vista, ou luz natural.6 Para ele, o fato que esse muro cortina poderia ser organizado através da repetição de um tipo de esquadria era equivalente a tocar violão com uma corda. Contra esse tipo de estrutura e o tipo de modernismo que ela implicava, Sert se voltou ao vernacular ou às construções tradicionais. As funções da janela (ventilação, vista, e luz) poderiam ser manejadas juntas numa única abertura ou separadamente, através do uso de diferentes elementos. Estas são questões práticas, reconhecidas dentro de um dado contexto de produção de edifícios. Sert era, claramente, parte da tradição moderna, mas também era parte do grupo que queria reconsiderar as premissas do modernismo inicial e introduzir na arquitetura contemporânea uma reavaliação do passado. A questão encarada por Sert foi observada por muitos: aquela de superar a monotonia e o anonimato do modernismo pós-guerra em reconsiderando os aspectos práticos e figurativos dos edifícios tradicionais, enquanto utilizando materiais e métodos contemporâneos.

No projeto e crítica do final das décadas de 1960 e 1970, arquitetos e teóricos que eram sensíveis às questões de temporalidade dos edifícios perseguiram duas considerações: como encontrar uma arquitetura e um urbanismo que restaurasse as conexões com as heranças culturais; e como descobrir uma maneira de construir que comunicasse visivelmente sua aderência às arquiteturas precedentes, facilitando assim a ansiedade sobre o significado ou falta de significação dos edifícios contemporâneos.

 

CONSTRUÇÕES MODERNAS E MEMÓRIA HISTÓRICA

História pode ser, e frequentemente é, vista como um fenômeno de mudança, de épocas e estilos associados sucedendo-se no tempo. Outra concepção era vigente nos anos 70, entretanto, especialmente na Itália, onde as leis ou formas permanentes da arquitetura e do urbanismo estavam sendo descobertas e propostas como uma estrutura alternativa para projeto. Uma figura importante neste período era Saverio Muratori, um teórico e historiador de cidades, cujos estudos sobre Veneza e Roma guiaram diversos projetos posteriores. Particularmente importante era sua dedicação à ideia que a arquitetura urbana conforma-se às leis ou tipologias recorrentes.

O interesse renovado em tipologia, que teve início na década de 60, foi uma tentativa de endereçar simultaneamente questões de repetição e de continuidade histórica na arquitetura. Debatia-se que a história da arquitetura lembrava a de outros ofícios e instrumentos úteis. Assim, como “um cesto ou um prato ou uma xícara, um objeto arquitetônico não só poderia ser repetido, mas também era destinado a ser repetido.”7 A lógica inerente da repetição negava a singularidade do objeto arquitetônico e ligava o projeto à reprodução.

Nos argumentos sobre o tipo arquitetônico, derivado de pensadores Iluministas como Quatremère de Quincy, a distinção entre tipo e modelo foi mais uma vez enfatizada: “A palavra ‘tipo’ não representa muito a imagem de algo a ser copiado ou perfeitamente imitado como a ideia de um elemento que por si só deve servir de regra para o modelo… O modelo, entendido em termos da execução prática da arte, é um objeto que deve ser repetido como é; tipo, pelo contrário, é um objeto com o qual um pode conceber trabalhos que não se assemelham um ao outro em nada. Tudo é preciso e dado no modelo; tudo é mais ou menos vago no tipo. Assim vemos que a imitação de tipos não envolve nada que sentimento ou espírito não possam reconhecer”.8

Para os defensores da teoria tipológica, a distinção modelo-tipo também está relacionada a sua crítica de produção em massa na medida em que, como o modelo, lidou com a exata repetição ou cópia de um objeto (normalmente tomado para ser um original, no sentido de um protótipo). O tipo, por contraste, permitiu uma conexão mais fragmentária e metafórica com ideias ou “estruturas” que não são tão técnicas, mas associativas e temáticas. Os interesses de Quatremère eram metafísicos, ligados à essência da arquitetura assim como aos princípios. Se a repetição de modelos na produção em massa negligenciou a história, a redescoberta do tipo seria o meio de recuperá-la, e com ela um senso de significado ou de vida. Ainda assim, dado a característica “essencial” de tipo, a questão da real aparência dos edifícios ou da comunicação de significado levantou uma ansiedade considerável. Embora Quatremère não propusesse a ideia, aqueles buscando uma arquitetura comunicativa – uma que substituiria o anonimato monótono do modernismo do meio do século – descobriram formas na história que pareciam ter uma constância equivalente à constância que teóricos atribuíram aos tipos. Esse “caso para a arquitetura figurativa”, no entanto, distorceu ambas as posições de Quatremère e Muratori, apenas como tentativa de superar o apoio modernista à repetição através da produção em massa.9

Aldo Rossi afirmou que a arquitetura situa-se na interface da memória e da razão. Tipos forma pensados para preservar a razão da forma, mas também eram vistos como objetos de recordação, até mesmo de anseio: “por trás de sentimentos eu busquei por leis imutáveis de uma tipologia atemporal.”10 Essa busca assume que o tipo existe fora de um tempo, diferente dos programas funcionais com os quais são associados quando construídos. Rossi baseou sua “crítica ao funcionalismo ingênuo” numa separação entre o tipo e sua concreta manifestação e buscou preservar essa distinção, tendo pleno conhecimento que as pressões da vida e do “locus” iriam militar contra. A separação entre o tipo e sua manifestação dá às cidades e edifícios resultantes da montagem de diferentes formas tipos uma sensação esmagadora de vazio e ausência, bastante similar às configurações “metafísicas” de Giorgio de Chirico. A reflexão de Rossi sobre o Lichthof de Zurique sugere, entretanto, que o vazio era menos importante que o senso de potencial – o potencial para a não habitação – feito evidente quando a vida é “suspensa”. Se os tipos se comunicassem, o fariam através de eventos que podem acontecer entre as definições que eles estabelecem, e não através das formas que eles apresentam. Esse “pode acontecer” sustenta a “imprecisão” do tipo proposto por Quatremère.

Outros, no entanto, associaram ‘convencionalidade’ do tipo com a forma de arbitrariedade que abastece o arquiteto com a liberdade para estabelecer uma posição ideológica através de decisões tomadas na manipulação das formas. Estas decisões dão ao projeto sua especificidade ou singularidade. Consequentemente, considerações de programa não são estrangeiras ao trabalho com tipos e tornam-se pré-requisitos necessários do conteúdo ideológico do projeto. A visão atemporal de Rossi da memória dos tipospropõe um senso de história que é distinto da historicidade de um projeto ideologicamente motivado ou ligado ao contexto?11

Se um considera a história uma sucessão de eventos distintos, frequentemente chamada de “tempo linear”, então a memória representa um entendimento diferente da temporalidade urbana e arquitetônica. Os dois exemplos de permanência apresentados por Rossi podem elucidar a forma como concebemos a história. Existem, em seu relato, dois tipos de permanência nos assentamentos urbanos, aqueles de habitação e aqueles de monumentos. Ambos persistem “através” do tempo, mas de maneiras diferentes: as habitações (distintamente da habitação indiviudual) permanecem as mesmas apesar das mudanças em detalhes e aspectos particulares de alguns de seus elementos, enquanto que o corpo físico de cada monumento permanece o mesmo apesar das mudanças em seu meio. Ambos dão às cidades seu caráter durável e identificável. Ainda sim neste, também, Rossi descreveu a dualidade: permanência pode ser patológica ou propulsora. Esta última distinção é importante à medida que fornece a chave para sua concepção de história. A permanências que são “propulsoras”– monumentos com o Palazzo della Ragione, em Pádua – não são mais definidas por sua função original; eles fogem do conceito de tempo linear ou história porque têm acomodado muitas funções através do tempo. O passado e presente que eles incorporaram à sua forma antecipam ocupações futuras. Isto faz do edifício, ou de sua imagem, menos uma crônica do que uma história, mesmo que uma ficção, que é também objeto de assunto do “pensamento analógico”. As conhecidas pinturas de Canaletto dos três projetos Palladianos são por esta razão uma chave para os projetos e argumentos de Rossi, já que mostra claramente como tempos e lugares que foram libertados das correntes das sucessões temporais podem ser unidos graças às suas relações tipológicas atemporais entre eles. Conjunções entre arquiteturas de diferentes épocas põe assim um fim na história, mas também abrem as possibilidades de lembrança. Neste ponto, a pesquisa “científica” de Rossi na história urbana torna-se autobiográfica, uma vez que as memórias que induzem conexões analógicas são sempre próprias de cada um.

Autobiografia, no entanto, não é a palavra final desse argumento. Autonomia, ou a racionalidade não contaminada da pesquisa arquitetônica dentro de tipos, sempre confronta lugares e materiais que têm especificidades concretas. A sucessão de funções que cada tipo sustenta é sempre ligada a uma topografia única, um locus. As séries de funções e modificações é portanto algo singular. O autônomo contém dentro dele o potencial do entendimento coletivo. Memória, não história, constrói fora do entendimento não-histórico de tipos a promessa de sua reapropriação em épocas específicas e lugares através de ficções de imaginação analógicas.

Esse entendimento da história e memória confere a superfície do edifício pobreza e potencial. É sem duvida justo descrever as superfícies da obra de Rossi como silenciosas e frias: ele próprio promoveu esta caracterização. Mas isto não é fracasso. O mesmo, ele pensava, poderia ser dito dos edifícios de Adolf Loos, e antes dele, dos projetos de Boullée. Não há um desejo de comunicar ou significar na obra de Rossi que signifique representar um conteúdo que não a própria arquitetura. Rafael Moneo observou que “a arquitetura é a única protagonista do trabalho [de Rossi], e é arquitetura que ele nos apresenta de novo e de novo, qualquer que seja o programa ou as circunstâncias no qual é produzido”.12 Portanto, o fato que seus edifícios não significam esse ou aquele conteúdo, não significa que eles são sem sentido, nem que não possam ser vistos como “imagens”. Mas eles devem ser vistos como imagens que refletem uns aos outros dentro do jogo de referências análogas. Eles refletem a forma como a substância histórica é intrínseca à arquitetura: “Rossi sempre situa um novo trabalho no contexto – a paisagem – de sua própria obra completa; isso se tornou uma espécie de estrutura para uma arquitetura do desejo, que por outro lado, mantém os atributos do anonimato e da generalidade que pertenceram à arquitetura do passado”.13 Superfícies como as do Complexo Gallaratese em Milão ou do Cemitério de Modena não fazem um grande esforço para significar. Essas superfícies são determinadas pelas realidades da construção de um local específico, nenhuma das quais é sentimental, mas todas as quais sustentam as lembranças que podem, com o tempo, reconstruir o domínio público.

Rossi foi lecionar no Instituto Federal de Tecnologia (ETH) de Zurique no começo dos anos 70, onde continuou a expor seus pensamentos para os arquitetos da nova geração. Em contraponto à abordagem puramente sociológica e psicológica de outros professores, as ideias de Rossi promoveram algo diferente, algo novo. Ele disse a seus alunos, entre eles Jacques Herzog e Pierre de Meuron, que arquitetura é sempre arquitetura e que as disciplinas sociais e psicológicas não podem substituí-la. A ênfase de Rossi na produção de arquitetura, nos desenhos e no mundo da imaginação substituiu a democracia da coleta de dados da vizinhança com a permanência de monumentos e seus tratados sobre arquitetura e cidade. Mas apesar de sua suspensão da história como categoria, em detrimento do passado como domínio da materialidade sedimentada, grande parte da arquitetura de Rossi desse período possui uma qualidade nostálgica e melancólica. Essa qualidade foi, com certeza, em parte intencional, mas também pode ter sido a armadilha de uma arquitetura que não pode escapar do inevitável deslize do tipo em modelo, uma vez que uma das mais difíceis tarefas da arquitetura é determinar como negociar suas relações com o passado como parte de seus projetos de se tornar – seu futuro.

Esse tópico está entrelaçado com o trabalho de Herzog e de Meuron e sua rejeição da tradição como mecanismo instrumental de projeção arquitetônica. Para Herzog e de Meuron há mais incertezas do que conforto em reproduzir o que foi em um passado. De acordo com Herzog, “Há dez ou vinte anos, o modernismo ainda estava esperando uma nova tradição moderna e o pós-modernismo ofereceu refazer o imaginário de épocas passadas. Mas hoje fazer um objeto é um novo problema cada vez. O que é teatro? Com o que se parece uma janela?”14

 

REPRESENTAÇÃO E NÃO-REPRESENTAÇÃO

As lições de Rossi foram recebidas portanto com certo grau de ceticismo por Herzog e de Meuron, que não haviam esquecido completamente o papel do sociológico e do psicológico. Mais importante, talvez, eles não tinham esquecido a qualidade perceptiva das coisas. Arquitetura é um artifício cujos atributos fenomenais são seus significados primários para engajar e ativar suas conexões com seus usuários. Rossi preza pelas virtudes da estabilidade da cidade Americana, articulada no começo da primeira edição inglesa de A Arquitetura da Cidade, afirma a representação e valoriza as imagens transmitidas pelos monumentos destas cidades. Em alguns aspectos não menos representacionais, a pele externa de muitos dos edifícios de Herzog e de Meuron são dependentes da clara compreensão sobre a natureza artificial dos materiais. Esse modo de construção mais frequente que nunca, primeiro gera uma resposta momentânea, visceral antes de transmitir a racionalidade de sua lógica. As formas e superfícies de seus edifícios também funcionam, portanto, em maneiras não representativas em comparação àquelas de Rossi, cujos primeiros trabalhos literalmente re-presentam, embora à moda redutiva, uma arquitetura idealizada e simbólica. A cenografia característica em muitas das obras de Rossi nos anos 70 constituem uma reencenação do passado como um pano de fundo para eventos contemporâneos – para o presente. A aparência de sua arquitetura, provavelmente mais do que qualquer arquiteto de seu período, conseguiu negociar a linha entre o modernismo e o classicismo. Compare, por exemplo, a Escola Primária de Fagnano Olna (1972 – 1976) com a Escola Secundária de Broni (1979). Mesmo que embora ambos os projetos dependam predominantemente do arranjo de planos simétricos, as superfícies destes edifícios são planas e brancas, pontuadas apenas pelas reentrâncias das janelas e portas. O efeito geral, no entanto, oscila entre a modernidade e a tradição, mesmo que – no caso da escola de Fagnano Olna em particular – essa tradição seja a arquitetura de Adolf Loos. A combinação do reducionismo com uma idealidade geométrica e simbólica reforça o caráter monumental destes edifícios, relacionando eles mais uma vez às interpretações de Loos da arquitetura como um túmulo ou monumento.

A indiferença da arquitetura sintética de Rossi, de acordo com Rafael Moneo, não faz alusão a nenhuma tendência estilística: ”O esforço de Rossi como arquiteto é abandonar e consignar o esquecimento de tudo que poderia ser rotulado como estilístico, porque para ele arquitetura não é um acessório, nem algo que pode ser adicionado. Pelo contrário, arquitetura é todas essas coisas que o homem constrói em seu absoluto desamparo.”15 Mas é importante reconhecer que a tentativa de Rossi de construir uma arquitetura anônima é por si só um projeto intelectual, não literal. Anonimato é tanto uma categoria estilística como o resultado da lembrança: mimesis. “Mimesis é melhor entendida a medida que é uma reprodução daquilo que já existe. É difícil de pensar em mimesis, mesmo em termos clássicos, sem estar ciente da existência de um mundo de consciente e reconhecida ficção.”16

Mimesis neste sentido – reprodução alcançada através do reconhecimento e baseada na imagem e na forma – é, na obra de Herzog e De Meuron, substituída por uma mimesis dos materiais e dos procedimentos de produção. Mas diferente da relação de funcionalismo com os imperativos de mecanização, sua obra contém uma montagem de produtos industriais. Ao invés da correlação um pra um entre elementos intencionalmente industriais e suas imagens arquitetônicas correspondentes, Herzog e De Meuron consideram os efeitos da superfície como parte do material e paleta construtiva de um projeto. Desta forma seu trabalho questiona o espaço entre as necessidades funcionais e a ornamentação, contingências e suplementos, enquanto a maioria de seus projetos construídos produzem efeitos que são ora adições ora interações dentro da lógica da produção repetitiva.

No Armazém Ricola (1986-1987), por exemplo, o revestimento em painéis de Eternit são mais largos no topo do que na base. Esses painéis inclinados são coroados por uma estrutura de madeira em balanço que revela a caixa de metal galvanizado no interior do edifício. Para os arquitetos, as referências visuais deste edifício são “os tradicionais empilhamentos de placas de madeira serrada em torno das numerosas serralherias da área, assim como a pedreira de calcário em que o armazém se localiza.” 17 O poder mimético deste edifício e outros é baseado na situação específica da produção e as circunstâncias de cada projeto ao invés da imagem de uma arquitetura precedente. Para Herzog e De Meuron, os processos e procedimentos de produção tornam-se os componentes chave do imagético de uma obra.

Sua mais recente biblioteca em Eberswalde (1996) explora as relações entre imagem e construção mais literalmente. Para este edifício, os arquitetos trabalharam em colaboração com o fotógrafo Thomas Ruff. Uma série de fotografias de jornais que Ruff havia colecionado foram quimicamente transferidas e impressas nas paredes de concreto da edificação. Seus painéis pré-fabricados mostram uma imagem fotográfica que é repetida horizontalmente sessenta e seis vezes, como uma bobina de filmes. São dezessete fileiras de painéis (com algumas imagens ocupando mais de uma fileira). A combinação e o senso narrativo das imagens estáticas são dependentes do ponto de vista e da luz. Consequentemente, elas permitem uma visual movimenta ou calma. O tipo de processo de esgrafito utilizado para a transferência das imagens na superfície deste edifício não é aditiva, como impressões, e sim trabalha apagando ou arranhando a superfície. Essa técnica é comum na aplicação de padrões geométricos em painéis de bricolagens assim como elementos decorativos casas de campo dos Alpes. A técnica de Herzog e de Meuron era mais refinada, de maneira que eles experimentaram e controlaram os tempos de secagem do concreto para a clareza das imagens pixelizadas.

 

CONSTRUINDO IMAGENS

O trabalho de Herzog e de Meuron é emblemático de muitas linhas que se desenvolveram no período posterior ao pós-modernismo, linhas que diferem em várias maneiras interessantes mas compartilham uma dúvida sobre a ordem de significação ou sentido proposto nesta arquitetura. Isso não é dizer que não há preocupação com a imagem do edifício, mas referências a arquiteturas precedentes não é o que está sendo oferecido. Nem essa tendência sinaliza um retorno à arquitetura moderna inicial, embora isso seja assumido ao tratar os materiais e a construção como a base da imagem do edifício. Hoje um crescente número de arquitetos está se tornando preocupado com a construção, materiais, e processos, mas eles não assumem que tecnologia irá “determinar” a imagem, no antigo sentido do funcionalismo. Embora Banham tenha alertado que os arquitetos que não “corressem com” a tecnologia poderiam ser deixados para trás, projetos recentes mostram que a alternativa não é tão simples.

A dúvida sobre o determinismo funcional está vinculada à suspeita sobre o papel de qualquer material em particular –diga-se vidro– em representar o que é novo sobre uma época. Ao invés disso, a questão foca no que é possível com tal material. Essa possibilidade é mais aprimorada através de pesquisa em novos tipos de vidro, suas propriedades que atuam de maneira importante na construção de efeitos espaciais e arquiteturais sem precedentes. Portanto, o vidro mudou: agora, por exemplo, ele pode ser usado como um material transparente, translúcido, ou opaco; pode ser usado estruturalmente; suas cores podem ser exploradas, assim como sua capacidade de receber e filtrar imagens inscritas. E esses usos não são os únicos que foram descobertos. Usos similarmente inesperados resultam de novas combinações com outros materiais. O vidro, então, não é apenas o signo de uma época, mas um tópico de pesquisa. Suas possibilidades operativas tem substituído seu papel como significante. O mesmo é verdade para outros materiais, tanto velhos quanto novos.

 

© Da tradução: Igor Fracalossi

Referência: LEATHERBARROW, David. “Technique and Appearance: the task of the present”, em: LEATHERBARROW, David; MOSTAFAVI, Mohsen. Surface Architecture. Cambrigde, MA; London: The MIT Press, 2002.

  1. Reyner Banham, Theory and Design in the First Machine Age (London, 1960), 329-339. Para um comentário recente desta passagem, ver Edwar Ford, The Details of Modern Architecture, vol 2 (Cambridge, Mass., 1996), 427
  2. Ludwig Mies Van der Rohe, “Skycrapers”, originalmente publicado em Frühlicht 1, n.4 (1922); reimpresso em Fritz Neurneyer, The Artless Word (Cambridge, Mass., 1991), 240. Mais recente, ver Detlef Mertins “Mies’s Skycraper ‘Project’: Towards the Redemption of Technical Structure”, em Detlef Mertins, ed. The Presence of Mies (New York, 1994), 49-67.
  3. Ludwig Mies Van der Rohe, « Skycrapers », originalmente publicado em Frühlicht 1, n.4 (1922); reimpresso em Fritz Neurneyer, The Artless Word (Cambridge, Mass., 1991), 240. Mais recente, ver Detlef Mertins “Mies’s Skycraper ‘Project’: Towards the Redemption of Tchnical Structure”, em Detlef Mertins, ed. The Presence of Mies (New York, 1994), 49-67.
  4. Phyllis Lambert descreveu a abordagem pública do edifício como a seguinte: “Esta solução do edifício promete coisas formidáveis…quase barrocas, não se sabe o que está lá e então você se depara com AQUILO – uma magnífica Praça… uma entrada magnífica para um edifício magnífico inteiramente na sua frente” Citação de David Spaeth, Mies van der Rohe (New York, 1985) 166
  5. Siegfried Kracauer, The Mass Ornament (Cambridge, Mass., 1985), 323-328
  6. José Luis Sert “Windows and Walls: An Approach to Design”, Architectural Record 131, no 5 (May 1962), 132-133 ; reimpresso como “On Windows and Walls », em José Luis Sert: Architecture City Planning, Urban Design, Ed. Knud Baslund (New York, 1967)
  7. José Rafael Moneo, “On Typology”, Oppositions 13 (1978), 32-35.
  8. Antoine-Chrysostome Quatremère de Quincy, “Type”, citado em Aldo Rossi, The Architecture of the City (Cambridge, Mass., 1982), 40.
  9. O “caso para arquitetura figurativa” foi feito por Michael Graves na defesa de uma arquitetura cenográfica onde figuravam motivos históricos; “A Case for Figurative Architecture”, em Michael Graves: Buildings and Projects 1966-1981, ed. K. V. Wheeler (New York, 1983), 11-14.
  10. Aldo Rossi, Scientific Autobiography (Cambridge, Mass., 1981), 15
  11. Alan Colquhoun, “Typology and Design Method“, em Essays in Architectural Criticism(Cambridge, Mass., 1981).
  12. Rafael Moneo, “Postscript”¸ em Aldo Rossi Buildings and Projects (New York, 1985), 310
  13. Ibid., 311
  14. Jacques Herzog, “Herzog & de Meuron 1981-2000“, El Croquis 60 + 84 (2000), 22
  15. Moneo, “Postscript”¸ 312
  16. Ibid., 314. Mais adiante: “Mimetismo para ele não é uma mera repetição, mas sim um esforço para representar o comum, o genérico, no qual implícito, carrega uma abstração… Para Rossi, enxergar coisas, representar elas é conhecê-las”.
  17. Herzog, “Herzog & de Meuron 1981-2000”, 86

Sobre este autor
Cita: Marina de Holanda. "Técnica e Aparência: o Desafio do Presente / David Leatherbarrow" 27 Dez 2012. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-74024/tecnica-e-aparencia-o-desafio-do-presente-david-leatherbarrow> ISSN 0719-8906

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