Casa Fatia / Procter-Rihl

“O Nome da Coisa”, por Carlos Eduardo Comas

Casa Fatia é o nome dado por Christopher Procter e Fernando Rihl à sua primeira realização doméstica em Porto Alegre. Nomear edifícios de apartamentos e escritórios é coisa corriqueira no país. Nomear uma casa é gesto singular e sugestivo. Subliminar ou decididamente, recorda o primeiro quarto do século 20, quando muita fachada de subúrbio brasileiro exibia uma inscrição comemorativa, Vila Matilde, Vila Adriana, Vila Rosaura ou similar. E quando, além-mar, o ultra-sofisticado Le Corbusier batizava- excepcionalmente- a vila mais luxuosa dos Savoye em Poissy como As Horas Claras, verbalizando um desejo de luz, higiene, pureza, transparência.

© Sue Barr

De fato, o nome de uma casa pode aproximar-se ao título de uma tela na interpretação de Marcel Duchamp, a “cor invisível”[1] que impregna a obra de arte e conduz o olhar e/ou o pensamento em direções precisas. Fatia, slice, lonja, tranche, trancio: a palavra muda, o sentido é o mesmo, pedaço chato, delgado e mais ou menos comprido que se corta ou separa de um objeto. Em qualquer língua, mesclam-se a declaração de formato, o registro de dependência, proveniência, comunhão e nexo, a nota de isolamento, descontinuidade, talho. Qualificação mais do que justa para o empreendimento da parceria de ianque com gaúcho.

© Marcelo Nunes

O nome dado desde sua base londrina destaca a situação inusitada, o lote de esquina de largura mínima que é resíduo da operação de extensão de rua, fatia esconsa do lote intermediário em quadra regular. A qualificação de superfície se estende à qualificação do volume edificado, a extrusão do lote que configura uma fatia de quarteirão ambivalente. A condição original do lote transparece na frente comprida com feitio de empena, rasgada só por fenda ou portinhola. A linha quebrada do telhado reforça o aspecto de perfil. O plantio viçoso e delicado abaixo atenua a rudeza da parede cega, que prefere passar por meação a ser tomada por fachada.

O volume assim configurado lembra os sobrados entre casas térreas num quarteirão do Brasil colônia ou do Brasil império, onde a irregularidade de silhueta co-existe com a continuidade do plano de fachada e a homologia da ocupação. Essa fatia evoca um todo que está alhures, é pré-moderno e denso, urbano, não acolhe nem casas geminadas, em contraste com o quarteirão real que a contém. No entanto, opaca e alongada, ela reflete a barra paralela e solta das divisas mais adiante, o edifício de apartamentos com elevador quase vizinho. Paradoxal, emenda o heteromorfismo desconjuntado do presente.

© Sue Barr

Tal qual a casa Citrohan, o volume que unifica é estreito e levantado. Anacrônico do ponto de vista do urbanismo moderno ortodoxo, é atualizado por sua composição à base de placas visualmente autônomas, na tradição da arquitetura moderna mais estrita. Minimizando sua massa, cada uma das paredes que o definem desde fora é como uma fatia de superfície distinta. O listado horizontal é comum à chapa corrugada, que ajuda a destacar a fachada de acesso, e ao concreto da empena, que denuncia as fôrmas artesanais em guias de madeira, mas aquela leva jeito de cortina e este de tapume, o pano desenrolado contraposto à cerca dura.

Ao contrário da casa Citrohan, a abstração de sobrado não renuncia à materialidade. A casca rugosa e a ausência de teto plano ou pilotis proclamam a afinidade com a casa Errázuris e a superação das limitações do Estilo Internacional em que vão logo se engajar Lucio Costa e seus colegas cariocas, amigos de diagonais além de curvas. Contudo, a materialidade é banal como Venturi indica. E a geometria do telhado metálico pregueado deve algo às explorações dos 1960 e 70, as coberturas de madeira de Venturi ou Charles Moore nos Estados Unidos e as coberturas em concreto de Eduardo Longo e Alcides Rocha Miranda no Brasil.[2]

Corte

O telhado tem três águas reais e uma virtual sobre o terraço fronteiro com piscina, definida pelos topos inclinados de muros e parapeitos. Origami que se arrepia como um gato ou se espreguiça como uma pessoa ao sol, oculta nas dobras o reservatório e mostra uma só vertente nas fachadas de acesso e fundos. A continuidade ininterrupta da superfície complexa reforça o elo com o passado, mas a abstração de sobrado inclui também a distorção que assinala a contemporaneidade. O recorte intermediário faz entrever o pátio de dupla altura e as vigas de concreto tampando o interstício entre a telha e a laje de forro envernizada.

Como a cobertura, toda parede externa é uma fatia laminada. Só o trecho junto ao pátio não tem a face interna isolada e revestida. Exceção, aí o concreto nu faz ver a natureza composta do invólucro. Tecnicamente justificada, é outro sinal de contemporaneidade a apartar a obra da Citrohan e da Errázuris. Envidraçadas, as demais faces do pátio mostram o salão com cozinha sob a saleta prolongada no terraço, o corredor sobre as peças de serviço, a suíte acima das garagens, a mesa de comer e cozer avançada pátio adentro. Lajes e paredes às vezes equipadas recortam o interior em fatias de espaço verticalizado, mégaros renovados e superpostos.[3]

© Sue Barr

A estreiteza do terreno vira virtude. A atenção se concentra assim no alto, nas gradações de pé-direito que diferenciam cada espaço na linha do raumplan de Loos. Quando não a atrai o firmamento e o enquadramento hábil de uma árvore, a plantada no pátio como a que estava já na rua. Ou não a choca a janela de vidro entre piscina e salão, filtrando luz tal um aquário ou emitindo luz qual monitor. Exibicionista, reitera a influência do arquiteto austríaco, evocando a piscina da casa para Josephine Baker em outro lote de esquina – e, por extensão, as fachadas listadas que a assemelham a uma fatia de bolo em camadas[4].

Plantas

O nome dado por Procter e Rihl não declara posse, ao contrário de uma inscrição comemorativa suburbana, nem aspiração, ao contrário do modelo corbusiano: esclarece, informa, instrui, edifica. Dá pistas sobre uma situação e uma linhagem, nesta incluída uma porção de arquitetos construindo também com a palavra. Em última instância, porém, é o objeto nomeado que atesta o aproveitamento feliz da situação e afirma a vitalidade da linhagem, enriquecendo o mundo com coisa que tem cor, dimensão, tamanho, peso, densidade, profundidade e não tem paz (como diz Arnaldo Antunes) [5] porque deve durar (como argumenta Hannah Arendt). [6]

© Marcelo Nunes

[1] Sanouillet, Michel. Duchamp du signe. ecrits de Marcel Duchamp Paris: Champs/Flammarion, 1973.

[2] Entre as obras de Longo destacam-se a casa de praia Lunardelli (1964) e a primeira casa do arquiteto (1969-71). Outros exemplos se vêem no site ongoeu.sites. uol.com.br, acessado em 20 /02/ 2006. De Alcides Rocha Miranda, a obra pertinente é a igreja-abrigo de Nossa Senhora da Piedade (1976), em Minas Gerais.

[3] A sala principal da casa micênica, com planta retangular e paredes proporcionalmente altas, considerada um antecedente do templo grego. Vincent Scully fala dos volumes mégaro de Le Corbusier (Citrohan) em oposição aos volumes sanduíche (como Savoye). Repetido por Colin Rowe na sua análise do convento de La Tourette, aplicado à igreja

[4] Em espanhol, em relação a bolos, diz-se un pedazo (a qualificação mais genérica) ao invés de una lonja (mais restritiva). Em português e em inglês, fatia e slice continuam sendo os termos mais comuns.

[5] As citações em itálico são excertos do poema concretista do escritor e compositor contemporâneo Arnaldo Antunes, “As coisas”. São Paulo: Ed. Iluminuras 1992, transcritos por Procter e Rihl em relevo branco sobre uma das paredes do salão.

[6] Para Arendt, em “The Human Condition”, Chicago: University of Chicago Press, 1958, o mundo humano é feito pelos artefatos não perecíveis que se opõem à futilidade da natureza, em particular as obras de arte. (melhorar a nota).

Ficha técnica:

  • Arquitetos:Procter-Rihl
  • Ano: 2003
  • Área construída: 210 m²
  • Tipo de projeto: Residencial
  • Status:Construído
  • Materialidade: Concreto e Vidro
  • Estrutura: Concreto
  • Localização: Porto Alegre, RS , Brasil
  • Implantação no terreno: Adossado à 1 divisa

Equipe:

  1. Colaboradores: Dirk Anderson, James Backwell, Johannes Lobbert (UK office)
  2. Arquiteto local: Arq. Mauro Medeiros (BR)

 

 

 

Informação Complementar:

  1. Engenheiro estrutural - Vidro e Aço:  Michael Baigent MBOK (UK)
  2. Engenheiro estrutural - Concreto: Antonio Pasquali (BR)
  3. Engenheiro de fundações: Vitor Pasin (BR)
  4. Engenheiro de serviços:  Flavio Mainardi (BR)
  5. Construtora:   JS Construções
  1. Cliente:  Neusa Oliveira
  2. Texto: Carlos Eduardo Comas

 

Sobre este escritório
Cita: Gica Fernandes. "Casa Fatia / Procter-Rihl" 02 Nov 2011. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-1921/casa-fatia-procter-rihl> ISSN 0719-8906

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