Geometria Habitada / Joaquim Guedes

"A physis é o logos."

Eupalinos ou O Arquiteto, de Paul Valéry, não é um li­vro de arquitetura. "Escritos de circunstância", de 1921, para um suntuoso volume –Architectures– com tiragem de ape­nas 500 exemplares, é, hoje, uma das mais importantes refle­xões sobre o processo de criação arquitetônica, desde a publi­cação do monumental De Re Aedificatoria., de Leon Battista Alberti, em 1453, em Bolonha. Poderia ser o Livro de Horas dos arquitetos. Porém, transcende ao seu incidental começo: investiga e revela o ambiente humano e as dramáticas vicis­situdes de sua invenção. É amplo, universal e clássico, cultuado pelos estudiosos das artes e da literatura.

Teorema, inerem ao texto extremo rigor e complexida­de. Enigma exato, labirintos iluminados, a ler sorrindo, exige o leitor para premiá-lo. Se, à primeira citação de frase de Eupa­linos sobre a importância do detalhe, Sócrates replica dizen­do "Compreendo e não compreendo"... é natural que o leitor-aprendiz sinta agradável intranquilidade à caça de múltiplos desdobramentos e sentidos.

As sombras de Fedro e Sócrates encontram-se no infer­no. Saudações e mesuras de Fedro, quase ironias. Sócrates lança, imediatamente, duas imagens-torpedo: "Espera. Não posso responder. Bem sabes que nos mortos a reflexão é indi­visível. Estamos agora muito simplificados para que uma ideia não nos absorva até o final de seu curso" e "Os viven­tes têm um corpo que lhes permite sair do conhecimento e nele reentrar. São feitos de uma casa e de uma abelha", fulminante associação homem-casa-abelha-pensamento, que remete à mesma urgência da identidade fundamental de Al­berti, "... a casa é uma pequena cidade".

Não podemos considerá-las como simples referências ou analogias ocasionais. É tal o contraste entre a leveza e a formalidade dos cumprimentos iniciais e a contundência da ma­gistral resposta, que temos que vê-las como velocíssimas in­tuições: seria, a primeira, uma premonitória advertência à babel universal contemporânea? à confusão dos circuitos con­gestionados que impede o diálogo? às ruidosas assembleias inconclusas, tão necessárias quanto inúteis? ao conflito sel­vagem e insolúvel dos interesses subalternos mais egoístas? à manifestação excessivamente enfática e concomitante de vul­garidades, que destrói qualquer possibilidade de entendimen­to? Na segunda imagem, sobretudo a identidade homem-casa é muito forte e leva ao centro mesmo de antigo debate. A casa é a primeira construção, e construção, é o tema, constrói o homem. A casa é seu corpo, que é a medida do mundo, dá as verdadeiras referências do prazer e guia o espírito.

Começam a conversar sobre as limitações atuais de suas vidas. Fedro ouve mal e não consegue divisar as coisas conhe­cidas que vão sendo levadas pelo rio do Tempo, "vastidão imen­sa e acidentada (...), sem brilho"; se estivesse vivo, sentiria náu­sea ante aquele "verdadeiro fluir dos seres". Postado na mar­gem das almas, lembra esquisitices dos mortais... "E, de onde então, (...) esse gosto do eterno entre os viventes? Tu perseguias o conhecimento. Os mais ignorantes tentam desesperadamente preservar até os cadáveres dos mortos. Outros constroem templos e tumbas, esforçando-se por torná-los indestrutíveis." Sócrates ignora a pequena maldade e contesta elegantemente: "Loucura! ó Fedro; claramente o percebes. Mas os Destinos decidiram que entre as coisas indispensáveis à raça humana figurassem necessariamente alguns desejos insensatos. Não ha­veria homens sem o amor. Nem a ciência, sem absurdas ambições. E de onde pensas que tenham sido extraídas a primei­ra ideia e a energia para os imensos esforços que erigiram inú­meras cidades tão ilustres e tantos monumentos inúteis que, embora incapaz de os conceber, a razão admira?".

Fedro força lembranças das pedras e construções do Pi­reu. Seduzido pela arte, sabedoria e domínio das coisas de seu amigo Eupalinos, discorre, loquaz, sobre a ordem e a magia do canteiro. Sócrates reluta, lacônico. Ao seu menor interes­se o discípulo atira, imediatamente, a frase inaugural que o arquiteto dizia com freqüência,

"Não há detalhes na execução."

Ambígua e subversiva, barbariza, negando o que quer afirmar, pois, ao contrário, tudo é detalhe, que, sendo nature­za e pensamento inseparáveis (Alberti), incorpora toda a inteligi­bilidade e toda a poética do objeto que constrói. Espaço e tempo da concepção e da realização do todo, é a gestação, o núcleo. Tudo que o antecede são dados, conhecimentos, premissas e preliminares da erótica edificatória, que inventa "verdades ar­tificiais e objetos essencialmente humanos"... "É, portanto, ine­vitavelmente levado a produzir objetos cujo grau do conjunto é sempre inferior ao grau de cada uma de suas partes."

O voo perfeito é completamente dependente da rigoro­sa execução e economia dos movimentos que o produzem, em condições ambientais determinantes, a que ave ou nave se sub­metem em liberdade...

Regina Meyer sugere que Mies Van Der Robe ter-se-ia inspirado nessa frase de Eupalinos ao proclamar

"Deus está no detalhe",

com a mesma simplicidade e concisão de sua arquitetura. Certamente conhecia o livro. A ligação com os intelectuais alemães e arquitetos contemporâneos da Bauhaus teria sido imediata, graças a Rilke, o tradutor, que fora, em Paris, durante muitos anos, secretário de Rodin.

Não existe "Deus" na seca frase de Valéry, mas está pre­sente em parágrafo anterior. Fedro: "Que maravilha suas ins­truções aos obreiros! Não restava traço algum de suas difíceis meditações da noite! Transmitia-lhes apenas ordens e núme­ros". Sócrates: "É a maneira própria de Deus."... E logo, irô­nico: "Que entusiasmo de uma sombra por um fantasma!"...

No princípio era a physis: "Busquei nitidez em meus pen­samentos, a fim de que, claramente gerados pela consideração das coisas, transformem-se, como por si mesmos, em atos de minha arte. (...) Não mais separo a ideia de um templo da de sua edificação (...) Sou avaro em divagações, concebo como se executasse (...) De tanto construir, disse-me sorrindo, creio ter-me construído a mim mesmo". E. Noulet diz que Valéry constrói "o progressivo conhecimento de si mesmo, para al­cançar a plenitude da consciência". Em Eupalinos imola-se, numa experiência homóloga de construção do mundo. Avan­ça, gradualmente, pela invenção de pequenas luzes e ressonâncias, levemente perceptíveis, mas densamente cumulativas, que compõem um claro dia. Os episódios mais fortes são feitos de milhares de cuidados e sutilezas imperdíveis.

Não podemos desconsiderar a advertência do próprio autor de que todas as ideias são suas, e é melhor não indagarmos muito, por que, exatamente, Sócrates e Fedro são os no­mes de batismo das sombras deste diálogo. Em cartas e expli­cações, Valéry conta, ainda, com naturalidade, ter sabido, mais tarde, pelo helenista Bidez, que Eupalinos não fora arqui­teto, mas empreiteiro de obras do aqueduto de Atenas... Em contrapartida, omite, desde o título, o fantástico arquiteto, sem nome, construtor de flutuantes "edifícios de madeira". Assim, temos que conviver com esse paradoxo: Valéry parece partir de fragmentos indiferenciados do mundo material percep­tível e sensível, de que evolve em abstrações ascensionais para revelar o "ato" supremo, criador de geometrias humanas; mas, a história, ou o que chamam de realidade, não têm a menor importância... Contudo, é dada como certa a influência, vir­tual ou real, de Auguste Perret, o grande arquiteto, possivel­mente amigo, inspirador e modelo...

Fedro tenta fazer com que Sócrates rejeite tanto a si mes­mo, quanto a própria filosofia, e que se assuma como construtor. A luta é elegante e longa, e a gloriosa capitulação ocorre ao meio do livro, à fala de número 159. Sócrates não confessa, ou não sabe, mas começa a renascer. "Certos povos perdem-se em seus pensamentos; mas para nós, Gregos, todas as coi­sas são formas. Retemos apenas suas relações; (...) templos de sabedoria e ciência, que podem bastar a todos os seres razoá­veis. Esta grande arte requer uma linguagem admiravelmente exata. O próprio nome que a designa é também, entre nós, o nome da razão e do cálculo." Fedro não perdoa e fulmina: "Pareces rendido à adoração da arquitetura!".

Valéry aproxima arquitetura e música para ensinar que ambas produzem espaços de puro envolvimento emocional e de apreensão direta, sem intermediações perceptivas, ao con­trário da pintura e da escultura, que dependem de imagens. Discorre, ainda, sobre movimento e natureza, geometria e pa­lavra, "que é construtora".

Para investigar a obra do homem, explora episódio real, de ingênua lucidez, ocorrido na juventude, o achado de um pequeno objeto, indefinível, à beira mar "— Da mesma matéria de sua forma: matéria a dúvidas". Obtém desse encontro re­velações extraordinárias sobre a arte, produto da mente, e sobre o trabalho do tempo: "Quem dos séculos dispõe, muda o que quer naquilo que quer", mas, em arte, "é como se os atos, ilu­minados pelo pensamento, abreviassem o curso da natureza; e pode-se dizer, com toda segurança, que um artista vale mil séculos, ou cem mil, ou muito mais".

Indaga os princípios das criações humanas: para o corpo, que chama de "utilidade"; ou bem para a alma, que persegue sob o nome de "beleza"... os quais, com a "solidez" ou "duração", constituem as grandes qualidades de uma obra completa. "Só a arquitetura as exige, (...) a mais completa das artes."

Como formar os construtores do novo milênio?

Faculdades de Arquitetura não diferem muito das velhas Escolas de Belas Artes; parecem não saber atualizar o ensino da construção, coisa de engenheiro. Estimulam exercícios fan­tasiosos, falsas-mega-estruturas, indiferentes à natureza dos problemas propostos, exageradas, insolúveis, ou absurdas; exercícios que excluem o aprendizado da paisagem e dos fa­tores econômicos e sociais, e maltratam as técnicas, em sua natureza e em seu papel enquanto cultura. Os constrangimen­tos ambientais ou de ordem prática são tidos como ameaça à liberdade criadora! Assim, insuficientemente consideradas as "necessidades da natureza", como define Albert' –que in­cluem os materiais de construção, o lugar e os humanos–, e sem conhecimentos suficientes da arte de construir, perdem-se em desenhos exploratórios do nada, erráticos e supersti­ciosos: dará certo? terei sucesso?

Há que aprender a imaginar o objeto e ao mesmo tem­po inventar a sua construção. Do contrário, a escola se torna o lugar de indefinível adestramento do que chamam cria­tividade, com materiais e métodos quaisquer. "— Onde? — Por quê? — Para quem? — Para quê? Quais as dimensões?" –podem estar vagamente insinuados, mas não são determinantes da cultura da invenção da forma. Assim, como res­ponder ao — O quê? e ao — Como? perguntas finais e fun­dantes da arquitetura?

Não obstante, arquiteto e sociedade se entenderão, mais tarde, de algum modo, forçados pela vida, no comércio da arte, na marra... Mas, nestas condições, aprender é muito di­fícil. Não há espaço e tempo para observar e meditar... "Ima­ginava apaixonadamente a natureza dos ventos e das águas, a mobilidade e a resistência desses fluidos. Meditava na ge­ração das tempestades e das calmarias (...) os caprichos e os arrependimentos das brisas (...) de algum modo, um navio deve ser criado pelo conhecimento do mar, e como que mol­dado pela própria onda (...) traçava estranhas figuras que o elucidavam sobre as secretas propriedades de seu flutuador; eu, porém, em nada daquilo reconhecia um navio."

Com os conhecimentos e tecnologias de que dispomos, como conceber arquiteturas para hoje, hodiernas, com a propriedade e a magnificência do passado? Como ensiná-las? Tí­nhamos obrigação de fazer melhor. Construtores egípcios, gre­gos, romanos, templários, todos os sábios da China, Japão e Rangum, Borromini, Brunelleschi e Michelangelo, com míni­ma ciência, sabiam tanto!

Rafael Dela Hoz afirma que arquitetura não se ensina, mas se aprende. Nuno Portas diz que "de tanto repetir as mesmas coisas, termina-se como que não mais acreditando nelas"; as palavras endurecem e desagregam-se; sons despedaçados perdem sentido, como no conto infantil.

Por outro lado, infelizmente, à falta de preparo físico e moral... não podemos mais adotar o modelo pedagógico do Sidoniano, o "boca muito salgada", antigo escravo na Sicília e genial autodidata, construtor de navios no Pireu. É demasia­damente brutal, e nada garante que a mente permaneça atenta e lúcida, no aprendizado de inventar em meio à violência, pe­rigos e desforços dos trabalhos diretos no mar. Sócrates o chama "canalha". Era, evidentemente, um homem excepcio­nal. (...) "Concebia para si claridades inteiramente pessoais...", que, o próprio Sócrates reconhece, em seguida, são "As úni­cas que podem ser universais". Aprendera a construir na prática. "Vícios e virtudes eram também para ele ocupações que têm seu tempo e elegância particulares e que se exercem conforme a ocasião (...) com vento a favor ou contra (...) o essencial é navegar corretamente. (...) Nunca perdeu a cabeça (...) jamais um remorso, jamais um anseio... Ato somente, e dinheiro vivo!" Amava e maltratava mulher e putas; teria salvo náufragos, mas de tudo tirava proveito; roubava e matava se necessário, inclusive piratas, para, ao fim, aprender, incansá­vel, das ondas, marsuínos e ventos, a arte de sua paixão. Em terra, subia ao convívio dos sábios que venerava!

Poetas, dizem, não se fazem nas faculdades de letras. Mas, as de arquitetura têm que formar arquitetos. Aí, Eu­palinos pode ser uma espécie de laboratório de verdadeiras experiências de reflexão e coragem.

Contava Roberto Sambonet, que certa vez, no café da manhã, surpreendera-se com Alvar Aalto dizendo-lhe, enquan­to rabiscava um projeto: ... "Veja, Roberto, este lado: tudo é técnico, circulações e máquinas, as formas são mais duras; mas, aqui, esta curva, ao lado do rio, é para mim o dorso de Elisa". Assunto tão grave, quanto secreto, quase impossível de ser verbalizado, desmancha-se. Eupalinos evoca, além da literalidade, o mesmo problema da impregnação da obra pela experiência pessoal e pelas emoções do autor, pontualmen­te, em cada momento e caso, em expressão própria: "o que penso é factível e o que faço refere-se ao inteligível (...) Es­cuta, Fedro (disse ainda), esse pequeno templo que construí para Hermes a alguns passos daqui, se soubesses o que signi­fica para mim! Onde o passante vê apenas elegante capela, –é tão pouco: quatro colunas, estilo muito simples,– im­primi a lembrança de um claro dia de minha vida. Ó doce me­tamorfose! Esse templo delicado, ninguém o sabe, é a imagem matemática de uma jovem de Corinto que, por felicidade, amei. Reproduz fielmente suas proporções. Vive para mim. Oferece-me o que lhe dei."

Eupalinos antecipa a reflexão sobre conceitos ligados à preservação ambiental, que confrontam com as necessidades e urgências do desenvolvimento físico, econômico e social. Da proteção à história, ao tempo e suas marcas –enquanto se aguarda eventual refuncionalização endógena e vital de áreas degradadas–, ao atropelo das transformações sustentadas pela alavancagem de negócios que tiranizam transferências de uso e rendas; entre manutenção, restauração, renovação e ousadas rupturas, que parecem indispensáveis, em cada caso, que fazer? como? quando? com que critérios? Valéry fala sobre a vida, a morte, a arte, o efêmero: "O que há de mais belo não figura no eterno! (...) O belo é inseparável da vida, e vida é o que morre". Enquanto "A maior parte dos homens têm da be­leza uma noção imortal (...) o destruir e o construir são iguais em importância; ambos exigem almas. Mas construir agrada mais ao meu espírito". Palavras como belo, beleza ou harmo­nia são usadas com extraordinária parcimônia, para um tex­to desta natureza e, na maioria das vezes, de maneira relativa ou crítica.

Perpassa em tudo um permanente e fino humor, que mar­ca, profundamente, o clima agradável deste diálogo. Riem muito de si mesmos; por vezes, Fedro, o discípulo, fere duro e gera ressentimentos.

Tanto faz, e seduz, que leva o mestre a rever-se, a renegar-se; vencido, ou vencedor, em celestial congraçamento, Sócrates admite ser o Anti-Sócrates, o construtor. "Ora, de todos os atos, o mais completo é o de construir. Uma obra exige amor, meditação, obediência ao teu mais belo pensamento, inven­ção de leis pela tua alma, e muitas outras coisas que ela ex­trai maravilhosamente de ti e que não suspeitavas possuir." Empolga-se descrevendo as belíssimas arquiteturas que faria. Considera o grande "ato" do Demiurgo, ao criar o mundo. Afinal, o arquiteto começa onde Deus termina, já que os hu­manos, feitos da sobra de lodo remanescente do caos, não estão satisfeitos... Há a natureza e, "por outro lado, cofres e celeiros de inteligentes tiranos e de cidadãos desmesuradamen­te enriquecidos em seus negócios; e pontífices (...); e reis (...); e arcontes delicados, cheios de fraquezas por atores e musi­cistas, abrasados do desejo de lhes construir, a expensas do fisco, os mais sonoros teatros". Mármores, cedros... "mas, muito menos ainda, deve o ouro dos homens dormir pre­guiçosamente seu pesado sono nas urnas e nas trevas do te­souro. Esse metal tão precioso, ao associar-se a uma fantasia, adquire as mais ativas virtudes do espírito. Tem-lhe a na­tureza inquieta. Sua essência é fuga. Transforma-se em todas as coisas, sem ser ele próprio transformado (...) subjuga os ho­mens; veste e desnuda as mulheres, com prontidão que pare­ce milagre. É, de fato, o agente mais abstrato depois do pen­samento". E, incorrigível, adverte clientes imaginários: "por certo vos custarei muito caro. Mas, ao fim, todos terão ga­nho com meu procedimento. Enganar-me-ei algumas vezes e, então, veremos algumas ruínas; mas, pode-se sempre, e com grande proveito, considerar uma obra falha como um degrau de aproximação ao mais belo". Fedro espicaça: "Eu os vejo muito felizes por seres um arquiteto morto!".

O livro termina em aula magistral de arquitetura. Só­crates descreve o que seriam seus inúmeros cuidados e aten­ções. A reflexão tem natureza eminentemente social, mas tem que ser autônoma. A repetição leva à perfeição, ao modelar, ao modelo, à moda, à cópia; mas, inventar implica conheci­mento e consciência, não admite cópia. "Mas qual é o teu próprio pensamento?" Quem copia não sabe nada. Por isso, aluno não tem guru. Tem que ser voraz e rebelde. Tem que negar os mestres. Tem que amá-los, ouvi-los, sugá-los e des­truí-los dentro de si, para aprender a construir seu caminho... "Mas, um polvo que interroga águas povoadas escolhe, sal­ta, agita seus tentáculos na espessura das ondas, vertigino­samente apossando-se do que lhe convém, não é um vivente cem vezes mais vivo que a imóvel esponja? Quantas espon­jas conhecemos, para sempre coladas sob um pórtico de Ate­nas, absorvendo e restituindo, sem esforço, todas as opiniões flutuantes à sua volta? Esponjas de palavras, banhadas e em­bebidas indiferentemente de Sócrates, Anaxágoras, Melito, do último que falou. Ó Sócrates, esponjas e tolos têm isto em comum: aderem".

Fedro se desespera. Preso à própria, armadilha, tendo seguido "piamente" em toda sua vida o mestre supremo, que agora se renega e é outro, reduz-se a ter sido mais ou menos um imbecil. Agride. Ridicularizado e, visivelmente, ressenti­do, Sócrates, enfim, desiste:

"Fedro, devo calar-me? Pois jamais saberás que templos, que teatros eu conceberia no puro estilo socrático! Ia fazer-te pensar corno eu teria conduzido minha obra. Primeiro, des­dobraria todas as questões, desenvolveria um método sem la­cuna." É a última grande fala de Sócrates. A aula. "Mas não saberás mais nada. Não podes conceber que o antigo Sócra­tes, e tua conhecida sombra..."

Extraordinários ensinamentos de uma curta lição inter­rompida.

Celestes infernos.

"Para agradar", na epígrafe do autor!

Referência: Paul Valéry, Eupalinos ou O Arquiteto, Editora 34, São Paulo, 1996.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Geometria Habitada / Joaquim Guedes" 27 Nov 2013. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-156409/geometria-habitada-slash-joaquim-guedes> ISSN 0719-8906

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