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Arquitetos: Elky Santos, RUÍNA
- Área: 123 m²
- Ano: 2022
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Fotografias:Lauro Rocha
Descrição enviada pela equipe de projeto. Apartamento Paraíso é um projeto de renovação de um apartamento de 123 m2 localizado no Edifício Olga Ferreira, no bairro do Paraíso, zona sul de São Paulo. Na região ainda é possível encontrar antigos sobrados, casarões e pequenos edifícios sobrevivendo frente ao avanço da especulação imobiliária.
O edifício de seis pavimentos foi construído em 1970, na esquina das ruas Achilles Masetti e Tomás Carvalhal, voltado para as faces norte e oeste.
O apartamento está localizado no primeiro pavimento do edifício, e apresentava tipologia original de três quartos - uma suíte -, três banheiros - um de serviço -, sala, cozinha e área de serviço. Apesar dos pés-direitos altos e ampla metragem quadrada, a fragmentação e separação do espaço não permitia que a iluminação natural chegasse principalmente aos ambientes voltados para o miolo do edifício, além de bloquear a ventilação cruzada.
A integração da cozinha com a área social e ampliação da sala foram as primeiras premissas de intervenção. Uma viga invertida antes embutida na parede, e que fazia divisa entre um dos quartos e a sala, tornou-se aparente durante a demolição e exigiu pensar uma estratégia que unisse esses dois ambientes separados pelo elemento estrutural de 10cm de altura acima do piso.
O que parecia um problema tornou-se solução: a viga invertida serviu de apoio a uma estrutura leve em marcenaria, que apelidamos de “elemento conector”. Fazendo a vez de banco para sentar e prateleiras, voltado para a sala de jantar/estar, e sofá com estante voltado para a sala de TV, escritório e corredor. O elemento conector setoriza os ambientes sem separá-los visualmente, além de possibilitar diferentes tipos de apropriações e programas para os espaços. As chapas de compensado do embasamento do elemento foram recortadas no tamanho preciso da viga, de modo a se encaixarem abraçando-a, e a partir dela se estruturando.
A demanda por duas suítes exigiu repensar o espaço de serviços, que deixou de contar com um pequeno banheiro mal ventilado e mal iluminado - herança de um Brasil colonial ainda muito presente - para a construção de um banheiro com acesso pela suíte principal e um lavabo voltado para o corredor e de uso comum.
Já a parede que dividia a cozinha da área de serviço ganhou fechamento com janelas de correr de madeira e vidro até o pé-direito, possibilitando não só uma permeabilidade visual de ponta a ponta do apartamento no sentido transversal, mas principalmente permitindo que a iluminação e a ventilação natural funcionassem plenamente.
Intencionando reduzir ao máximo o entulho proveniente da demolição - e com isso reduzir inclusive os custos da obra -, foi traçada uma estratégia de reaproveitamento dos materiais já presentes no apartamento: tijolos maciços, pisos cerâmicos, revestimentos cimentícios, tijolo de vidro, blocos irregulares de argamassas e concreto, o piso de taco em peroba rosa. Toda a variedade de materiais disponíveis no próprio local da obra deveriam retornar na sua função original ou incorporados a uma nova utilidade. A nova infraestrutura elétrica se deu por eletrodutos aparentes, de forma a evitar recortes nas alvenarias e maior produção de entulho na obra. Janelas originais de ferro do hall de entrada e área de serviços foram desinstaladas, recuperadas e reinseridas.
Com auxílio de um triturador de pequeno/médio porte, foi possível produzir em canteiro todo tipo de agregado graúdo (diâmetro superior a 4,8mm) e miúdo (diâmetro inferior a 4,8mm), para reaplicação em contrapisos, argamassas de chapisco, reboco e acabamentos, bancadas e pisos de concreto, além de revestimentos com azulejos. Graças ao não descarte e armazenamento apropriado dos tacos de peroba rosa originais descolados ou danificados, foi possível restaurar completamente o piso de madeira sem que fosse necessária reposição com novos tacos.
Durante o processo desenvolvemos um material próprio para execução de pisos e bancadas economicamente acessíveis - o “entulhite” -, feito com entulho de obra e com estética semelhante ao convencional granilite. A estrutura das bancadas da cozinha e da área de serviço foram erguidas com tijolos maciços originais provenientes da demolição da abertura de paredes. Tijolos de vidro existentes foram instalados na parte superior da parede que faz a divisa entre o lavabo e o banheiro da suíte principal, proporcionando maior iluminação nos dois ambientes. Os azulejos antigos que revestiam os banheiros, danificados devido à ação do tempo e à sua retirada - desinstalar esse tipo de material mais sensível configura um processo de maior complexidade -, serviram como piso e revestimento de parede para as áreas avarandadas em forma de “caquinho” - mesma técnica dos conhecidos pisos de caquinhos da Fábrica de Cerâmica São Caetano, muito comuns nas décadas de 1950 e 1960 em São Paulo.
A possibilidade de prototipar diversas amostras com os materiais durante a obra foi fundamental para a definição das soluções técnicas e estéticas mais adequadas. Foram algumas idas e vindas do desenho para o canteiro: a experimentação permite a constante correção de vícios consequentes de uma formação de arquitetura ainda muito projetual mas pouco prática, e proporciona aprendizados com os quais é possível buscar a coincidência entre arquitetura e construção. E a aproximação com a demolição evidencia o quanto esse processo tão fundamental e ao mesmo tempo tão negligenciado pelo campo da arquitetura necessita reflexão e proposição, a fim de buscarmos modos de produzir que gerem maior autonomia e autossuficiência.
As intervenções do projeto alteraram consideravelmente a dinâmica espacial anterior: as novas materialidades resultantes do reuso dos materiais originais, com novas aplicações e significados, ainda que reverenciando uma memória ali constituída; a luz natural que passou a construir novos espaços e tempos dentro dos ambientes com o passar das horas; e a gentileza da copa das árvores da calçada que adentram pelas janelas, e que agora são vistas com maior nitidez, conferiram aos diferentes espaços do apartamento uma certa nostalgia de um tempo que ainda pode ser vivido, dessas coisas que não se projeta.