O desafio da tradição e a reciclagem do existente / Alexandra Maria de Carvalho

Desde os tempos pré-históricos até à modernidade, o problema da habitação nunca deixou de ser atual e de ter interesse. Primitiva ou complicada, a existência do Homem nunca prescindiu da cabana, gruta ou casa que lhe serviu de abrigo, garantindo-lhe, pelo menos, relativa tranquilidade e repouso retemperador. Ainda agora nestes tempos modernos e de profunda transformação em todos os aspetos da vida quotidiana, as questões que se ligam com a habitação“ [1] com a construção e o desenvolvimento sustentável não deixam de preocupar arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, ecologistas, etc.

Muda e varia o ângulo de observação de cada um, mas o objetivo é o mesmo, atender às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazerem as suas próprias necessidades.

A definição de desenvolvimento sustentavél foi elaborada pela Comissão Brundtland (1987) e é uma ciência nova que pelas implicações no futuro requer muito mais compreensão interdisciplinar e a maior cooperação. É uma relação estreita entre os princípios, as convicções, a ética e os valores que subscrevem uma sociedade em particular ou uma comunidade, e uma aproximação coletiva para esse desenvolvimento. A qualidade do desenho e da própria construção tem uma influência extraordinária na esperança de vida de um edifício. Um edifício obsoleto é um assunto complexo que envolve uma ampla interação de fatores funcionais, técnicos, sociais, culturais e económicos.[2]

Em 1933, Raúl Lino no seu livro, Casas Portuguesas escreveu, “o que virá a ser da casa de amanhã? Se as condições de vida nos obrigarem a continuar no caminho da simplificação e do regime coletivo; se o ritmo de viver se for acelerando cada vez mais como promete, se a nossa existência passar a decorrer no signo da instabilidade e inquietação, espécie de novo nomadismo estimulado pelo crescente apuro de especializações, pela maior facilidade e rapidez nos meios de transporte – então é provavél que a nossa atividade inteira se desenrole concentrada em edifícios.“

Arquitetura Vernácula Portuguesa. Manique, Cascais. . Image © Alexandra Maria de Carvalho

Hoje passados mais de 8 décadas, podemos responder à sua questão.

A casa atual, geralmente, é muito quente no Verão e muito fria no Inverno, solicitando aos seus utilizadores o recurso a meios de aquecimento e refigeração mecânicos, onde a maioria das pessoas acredita que são os únicos meios ideais para o conforto, qualidade e bem estar, associado ainda na grande maioria a uma má construção, soluções arquitetónicas pouco ou nada adequadas e à fraca qualidade dos isolamentos térmicos. A casa atual é uma fonte consumidora de energia indo totalmente contra ao Princípio de Brundtland.

Imagem muito comum nos dias de hoje. Uso excessivo de aparelhos de ar condicionado e o seu mau enquadramento nas fachadas dos edifícios.. Image © Alexandra Maria de Carvalho

A indústria da construção civil consome, como se sabe, cerca de 50% dos recursos mundiais sendo uma das atividades menos sustentáveis do planeta, porém a nossa vida quotidiana desenvolve-se em ambientes edificados; vivemos em casas, trabalhamos em escritórios, viajamos em estradas, socializamos em bares e restaurantes. A sociedade contemporânea vive nas cidades e depende das edificações para o seu conforto, bem estar e lazer, mas o planeta num futuro próximo não terá capacidade de se auto-sustentar e o ecossistema global entrará em crise. [3]

É urgente inverter este paradigma e criar novas metodologias de projeto logo na sua fase inicial (estudo prévio), e é importante que exista uma ligação entre projeto de arquitetura, desenho e planeamento urbano, sendo vital haver uma ligação entre as exigências funcionais, tecnológicas, instrumentos legais, espaciais e bioclimáticos, quer na construção dos novos edifícios, quer na reabilitação dos edifícios existentes. As edificações a recuperar ou a reabilitar são tão mais dificies de serem adaptadas do que as que ainda estão em fase de projeto, por regra quanto mais antigas as edificações, mais dificeis serão as suas adptações.

A vida útil de uma edificação é longa, atualmente estimada em cem anos, enquanto que a sua vida funcional é de cinquenta, as edificações construídas hoje ainda existirão no futuro e serão a base de um futuro incerto, por isso é importante pensarmos a Arquitetura a longo prazo e investir em tecnologias e soluções de projeto ecológicas, cujos beneficios serão percebidos no futuro.

A Arquitetura enfrenta um enorme desafio e exige-se que arquitetos e engenheiros projetem de forma mais inteligente, mais adequada ao terreno e ao clima e ecologicamente mais certas. Atualmente projeta-se “porque sim“ e estão longe de serem aproveitadas as potencialidades da arquitetura para satisfazer as exigências de conforto e do bem estar. Uma falha que tem vindo a ser apontada aos arquitetos pelos engenheiros mecânicos, é o uso excessivo das “máquinas“ - subentenda-se, sistemas de aquecimento e arrefecimento, sobre os quais recaem solicitações que podiam e deviam ser minoradas ou mesmo evitadas pela arquitetura.

A energia solar passiva, por exemplo, é normalmente utilizada nas edificações, mas o seu potencial está de longe de ser bem explorado. Fachadas de vidro voltadas a sul podem constituir uma forma útil de aquecimento, mas voltadas a poente geram efeito contrário e indesejável.

É importante conhecer os diferentes percursos do sol ao longo do dia para as diferentes estações do ano no sentido de aproveitar da melhor forma os ganhos solares no interior dos edificios, nos casos em que o contributo da radiação solar é necessário, e restringuir a sua entrada nos casos em que o mesmo efeito se torna inconveniente.

É fundamental o estudo da forma do edifício e das obstruções à incidência de radiação solar, estudar a geometria da insolação ou geometria solar na qual geralmente se incluem os efeitos de palas e sombreamentos a utilizar, bem como estudar os efeitos sombreadores devidos aos edifícios vizinhos, às árvores e à forma urbana do espaço circundante (praças, ruas, avenidas, etc.)

A posição do sol ao longo do ano tem uma grande importância no que respeita à definição e dimensionamento das fachadas envidraçadas num edifício e ao tipo de vidro que se escolhe.

O conceito de arquitetura bioclimática, arquitetura solar passiva ou qualquer outra denominação, que ao longo das últimas décadas tem vindo a ser atribuída a um determinado tipo de arquitetura, surge como uma resposta aos princípios ecológicos da arquitetura que na sua concepção aborda o clima como uma variável importante no projeto arquitetónico.

Mais importante que a denominação, são os princípios e os conceitos fundamentais e o conjunto de regras simples, que mais não visam senão compreender quais as variáveis existentes no local - sol, vento, água, topografia e como essas variáveis podem interagir com o edifício de forma positiva e proporcionar no seu interior as condições de conforto térmico adequadas. Trata-se de uma arquitetura mais adequada ao meio ambiente e ao lugar onde se implanta, sendo por isso impensável para duas situações distintas, adoptar soluções de projeto iguais.

Do ponto de vista conceptual, as abordagens ecológicas e os princípios da arquitetura bioclimática já integravam textos clássicos e renascentistas.  Para Vitrúvio, por exemplo, o conforto e o clima faziam parte do modelo triangular de firmitas, vetustas e utilitas - solidez, beleza e utilidade.

O triângulo de Vitrúvio é semelhante ao do desenvolvimento sustentável, pois um projeto não é económicamente sustentável se não cumprir uma função; não é ambientalmente sustentável se não for construído de forma sólida e não é socialmente sustentável se não for útil para os seus utilizadores.[4]

Segundo Vitrúvio, a implantação, a disposição e a orientação das edificações deviam ser determinadas por fatores ambientais.

No século I a.C. Vitrúvio sugeria que a verdadeira natureza do projeto arquitetónico seria atuar como agente mediador entre o conforto interno e o ambiente externo desempenhando um papel fundamental no sentido de explorar os recursos naturais, como a iluminação solar e a ventilação natural, em vez de excluí-los.[5]

…de forma adequada, os edifícios estarão dispostos entre si se, acima de tudo, se tiver tido em conta as orientações e inclinações do céu no lugar onde se deseja construi-los, pois não devem ser construídos da mesma maneira no Egipto ou em Espanha, ou no Reino de Pont ou em Roma; e, assim, sempre de acordo com o modo de construção dos países…”[6]

“ …a sala de jantar bem como as casas de banho, devem-se localizar viradas para Poente pois, no inverno, é crucial a claridade da tarde nestas divisões e o facto de serem iluminadas diretamente pelo Sol leva a uma libertação de calor extremamente agradável durante a tarde. Os quartos de dormir e os escritórios devem localizar-se virados para Nascente, pois o seu uso exige a luz matinal e porque os livros não se estragam tão facilmente como aqueles que estão em divisões viradas para Poente. As salas de jantar que se utilizam na primavera ou no outono devem localizar-se viradas para Oriente, pois, através das persianas que se mantêm fechadas até que o Sol esteja a Poente, e manter-se-á, nessas divisões, uma temperatura média durante todo o tempo que forem utilizadas. As salas de estar usadas no verão devem localizar-se a Norte porque estarão constantemente frescas e tornar-se-ão um lugar saudável e agradável, uma vez que não estão expostas ao calor do Sol, que se torna insuportável sobretudo durante o solstício de verão…”[7]

Vejamos a obra da Casa Jacobs II de Frank Lloyd Wright, como referência da adaptação do edifício ao clima e em particular à trajetória do sol e onde as preocupações com a qualidade térmica no interior e com a integração do clima na arquitetura, não foram esquecidas, projeto pioneiro do ano de 1944, um bom exemplo de uma casa bem adaptada ao clima e ao terreno.

Como exemplo de construções adequadas e também adaptadas ao clima podemos citar as construções em São Tomé e Príncipe, vernáculas e urbanas, com grande ensombramento das fachadas para evitar a insolação excessiva e também proteção das águas das chuvas e ainda o piso sobre-elevado do solo, que facilita a ventilação transversal inferior ao pavimento, contribuindo para o seu arrefecimento e impede em simultâneo a subida da humidade do solo.

Construção na Cidade de S. Tomé - Avenida Marginal. Image © Alexandra Maria de Carvalho

Ao analisarmos ambos os exemplos e ao lermos os textos de Vitrúvio, concluimos, que os princípios bioclimáticos têm mais de dois mil anos, porém continuam atuais, embora esquecidos em diversas áreas, como a arquitetura e a sociologia. Podemos ainda afirmar que a ideia de sustentabilidade está profundamente enraizada no pensamento clássico e renascentista.

Cada vez mais, a sustentabilidade é considerada como o principal argumento para a arquitetura do século XXI e deverá conduzir à reutilização e à reciclagem, não só dos recursos naturais, como é o caso da água, mas também dos materiais de construção, especialmente os que apresentam um alto nível de energia incorporada, como o aço, o alumínio, o chumbo e o cobre, e embora normalmente venham a ser reciclados, poucos são os edifícios cujas estruturas metálicas ou de madeira são projetadas de forma a serem reutilizadas. Os elementos de aço, quando utilizados em obra, são soldados em vez de aparafusados e os tijolos são assentes com argamassa de cimento que possuem uma enorme resistência e aderência, quando podiam ser assentes com argamassas menos resistentes e à base de cal hidráulica e resinas, com vista à sua reutilização futura, não violando por isso os regulamentos sísmicos.[8]

A nova ordem da sustentabilidade requer também novas tecnologias construtivas. As fachadas ventiladas com materiais cerâmicos por exemplo, conhecem popularidade crescente, em virtude das vantagens que representam, quer numa perspetiva técnica e de desempenho (térmico e acústico) quer económica e de manutenção.

No Inverno, é possível reduzir os gastos em aquecimento e no Verão, em função dos efeitos de ventilação e sombreamentos, reduzir os gastos de arrefecimento. A aplicação do isolamento pelo exterior permite a criação de uma caixa-de-ar (entre o isolamento e o revestimento) que, por efeito de chaminé ativa uma eficaz ventilação natural assegurando notáveis benefícios, nomeadamente maior inércia térmica, melhor conforto acústico e eliminam ainda as pontes térmicas, consequentemente produzem maior conforto ambiental no interior dos edfícios e no meio ambiente.[9]

Pormenor Construtivo de uma Fachada Ventilada (s/esc.). Image © Alexandra Maria de Carvalho

As células fotovoltaicas, as fachadas inteligentes, os isolamentos, massa térmica, ventilação natural e geotermia estão a ser utilizadas na arquitetura, abrindo caminho para a solução do futuro, já em vigor em muitos países – cada casa, cada gerador de energia, a meta das casas Carbono Zero, edifícios que durante o ano não usam mais energia do que aquela que geram, a que os arquitetos deverão estar atentos, e cuja base respeita os conceitos das construções solares passivas da antiguidade, potenciando os ganhos solares, recorrendo a um super isolamento da envolvente (paredes => 0,10m de XPS e coberturas => 0,15m de XPS para a Europa), eliminação de pontes térmicas, usando materiais de baixa condutibilidade, caldeiras de grande eficiência, painéis fotovoltaicos, aquecimento solar, energia geotérmica, conceitos já aproveitados nos países do norte da Europa, e ainda a recuperação de calor. Os vãos exteriores deverão respeitar normas rígidas (30-35% da área da fachada, para a Europa, e 25% para o Brasil), tendo especial atenção na redução drástica das atuais superficies vidradas e quanto a sustentabilidade, utilizando regras severas quanto às condições técnicas e económicas.

A função do arquiteto será a de saber ordenar e preparar a instalação para os dispositivos de captação e regulação de energia solar e outras, e inovar nas novas tecnologias energéticas com um desenho adequado, tendo em vista o futuro que já aí está.

NOTAS
[1] Lino, 1993, p.9
[2] Curwell, p. 25-30
[3] Edwards, 2005, p.3
[4] Edwards, 2005, p.163
[5] Edwards, 2005, p.37
[6] Vitrúvio, 6º Livro, Cap. I
[7] Vitrúvio, 6º Livro, Cap. IV
[8] Edwards, 2005, p.139
[9] Recer, p.9

REFERÊNCIAS
Bruce Brooks Pfeiffer, Frank Lloyd Wright, Tachen, 2007.
Brian Edwards, O Guia Básico para a Sustentabilidade, 2ª Edição, Editora Gustavo Gili, Barcelona, 2008.
Hélder Gonçalves et al, Conceitos Bioclimáticos para os Edifícios em Portugal, Tipografia Peres, Lisboa, 2004.
Maria Helena Rua, Os Dez Livros de Vitrúvio, 1ª Edição, Artes Gráficas, Lda, Lisboa, 1998.
Raúl Lino, Casas Portuguesas – Alguns Apontamentos sobre o Arquitetar das Casas Simples, 1ª Edição, Livros Cotovia, Lisboa, 1933.
Recer-Indústria de Revestimentos Cerâmicos, S.A, Catálogo Fachadas Ventiladas.
Steve Curwell et al, Hazardous Building Materials, 2ª Edição, Spon Press, London.

Alexandra Maria de Carvalho é Arquiteta, Mestra em Urbanismo, Pós-graduada em Construção Sustentável e Doutoranda em Arquitetura. É autora de diversos projetos de Arquitetura e Urbanismo em Portugal e Angola.

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Sobre este autor
Cita: Alexandra Maria de Carvalho. "O desafio da tradição e a reciclagem do existente / Alexandra Maria de Carvalho" 18 Out 2016. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/797536/o-desafio-da-tradicao-e-a-reciclagem-do-existente-alexandra-maria-de-carvalho> ISSN 0719-8906

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