De interstícios a infraestruturas / Eduardo Pimentel Pizarro

O que é favela, hoje, em São Paulo? Quais seus conflitos e potencialidades? Como arquitetos, urbanistas e planejadores poderiam propor uma forma mais gentil e inovadora de intervir nessa realidade? A partir destas questões são propostas estratégias de requalificação para a segunda maior favela da cidade de São Paulo, Paraisópolis.

Favela?

Como parte do processo de projeto, especialistas urbanos nacionais e internacionais foram questionados sobre como definiriam o termo favela em apenas uma palavra.

Para Sameh Naguib Wahba (World Bank, Washington), responder a esta questão seria redutivo e deixaria de lado a riqueza e complexidade inerentes ao termo favela. Contudo, para Klaus Bode (Architectural Association Graduate School, Chapman/BDSP, Londres), favela é um “caos organizado”. A definição de Klaus se relaciona à “auto-organização” citada por Rainer Hehl (Master of Advanced Studies in Urban Design, ETH, Zurique) ou “auto-construção” mencionada por Víctor Oddó (Elemental, Chile). Richard Burdett (London School of Economics, Londres) descreve favela como “resiliente”, e Simon Smithson (Rogers Stirk Harbour+Partners, Londres) mostra o poder da favela ao defini-la como “potencial”, assim como Elisabete França (ex-Superintendência da Sehab, São Paulo) sintetiza favela como “vida”e Gilson Rodrigues (Presidente da União dos Moradores de Paraisópolis, São Paulo) como “comunidade”. [1]

A partir deste panorama, a favela parece constituir, de fato, uma grande oportunidade, sob diferentes aspectos: oportunidade para escutar as necessidades dos moradores, para discutir, para mudar, para inovar, para projetar e intervir na realidade.

Cidade do Paraíso?

Dos 190 milhões de brasileiros, 11 milhões vivem em assentamentos informais. 11 milhões é também a população absoluta da maior cidade do país e sétima maior do Mundo, São Paulo.[2] Na cidade de São Paulo, 3 milhões de pessoas moram em assentamentos informais, dos quais 1.6 milhões residem em favelas.[3]

A segunda maior favela de São Paulo se desenvolve em meio a um bairro de classe média alta e concentra cerca de 100 mil habitantes.[4] Seu nome é Paraisópolis, ou seja, Cidade do Paraíso. De cara, o nome pode parecer controverso para um assentamento informal, mas, talvez, esteja relacionado com seu futuro potencial.

Favela de Paraisópolis. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

Desde a década de 1970, Paraisópolis foi sendo construída, gradualmente e informalmente, sobre mais de 100 hectares de um loteamento urbano privado, na forma de barracos de madeira, e marcada por carências de habitabilidade, infraestrutura e serviços urbanos. Todavia, desde 2005, o Poder Público Municipal, principalmente, vem investindo em projetos de habitação e infraestrutura para as áreas de risco, e a população tem alcançado níveis mais altos de educação e poder de compra. Hoje em dia, Paraisópolis constitui uma realidade urbana consolidada, composta por construções em alvenaria, de três a cinco pavimentos, em sua maioria, articuladas por ruas asfaltadas, com iluminação urbana, sistema de coleta de resíduos e outros serviços públicos.

Apesar dos maiores níveis de habitação digna, infraestrutura de eletricidade, coleta de esgoto e abastecimento de água, que são muito importantes, de fato, as intervenções feitas em Paraisópolis, em seu caráter emergencial, não tiveram tempo hábil para estabelecer outros diálogos com a favela em si, que poderiam considerar uma série de sutilezas urbanas e ambientais, a dimensão oculta do microplanejamento, além da identidade do território e de seus habitantes.

Com base nesta situação, a proposta aqui apresentada objetiva requalificar a Favela de Paraisópolis, tomando como ponto de partida suas oportunidades latentes para o desenho de novos futuros.[5]

“Anatomia Informal”, colagem especulativa acerca da forma urbana da favela. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

Estratégia!

A estratégia geral parte do contexto local, no que toca ao clima, tecido urbano, forma construída, dinâmicas e fluxos urbanos, necessidades comunitárias e interações sociais.  Trata-se, fundamentalmente, de uma estratégia de-baixo -para-cima (bottom-up), ao invés de-cima-para-baixo (top-down).

A estratégia vem de duas grandes potencialidades observadas em campo: primeiro, na favela as dimensões pública e privada são articuladas de forma diferente do restante da cidade, da dita “cidade formal”; segundo, os pavimentos de um edifício na favela correspondem a lotes urbanos da cidade formal. Ou seja, cada pavimento de uma edificação na favela é independente, no que diz respeito à propriedade, aos materiais construtivos e de acabamento, ao acesso (vertical ou horizontal), e pode ser construído, reconstruído, vendido ou alugado de forma autônoma.

Estas potencialidades conduzem à conclusão de que o projeto e intervenção em favelas consolidadas não deveriam mais ser pautados pela remoção de edificações inteiras, de modo a criar terra limpa para construção de torres e edifícios-lâmina novíssimos, como tem sido feito em Paraisópolis e outros assentamentos informais do Brasil. Pelo contrário, o projeto em favela deveria ser mais gentil e próximo de uma acupuntura urbana, tomando cada pavimento de uma construção como unidade mínima de projeto e intervenção, uma vez feitos os devidos reforços estruturais e infraestruturais.

Estratégia de intervenção que toma os pavimentos independentes como unidades mínimas (colagem). Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro
Estratégia de intervenção que toma os pavimentos independentes como unidades mínimas (colagem). Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

A estratégia foca o redesenho dos espaços entre os edifícios (spaces in-between the buildings), também denominados como interstícios urbanos, recriando perspectivas e espaços para pessoas, sol, vento, paisagem, cultura e outras oportunidades urbanas. Por exemplo, um pavimento previamente ocupado pela casa da Dona Maria pode ser transformado em um espaço público, como uma pequena praça, ou um lavanderia coletiva, ou apenas um espaço para respirar, sentir a luz e o vento, ou apreciar visuais urbanas e a vida em comunidade. Enquanto isso, a Dona Maria se muda para a cobertura da construção. O resultado da estratégia é o aumento da permeabilidade da massa construída da favela, acompanhada por sensível aumento de gabarito. A estratégia, portanto, mantém os moradores no local e também o seu modo de vida, como resultado de uma ação conjunta entre Poder Público e Comunidade.

Desta forma é possível manter, e até fortalecer, algumas características genuínas da favela, como diversidade, crescimento constante, transformações espontâneas, movimento e vivacidade.

Projeto!

Na proposta, os interstícios urbanos, além dos próprios edifícios, são redesenhados e resignificados em uma rede multi-escalar, de modo a constituir uma efetiva infraestrutura ambiental, urbana e social para a favela.

Interstícios urbanos como infraestrutura, em m³ (modelo volumétrico digital). Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro
Interstícios urbanos (impressão 3D). Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

O corte a seguir mostra a proposta para uma quadra urbana de Paraisópolis. O redesenho parte da massa construída como uma sobreposição de pavimentos edilícios independentes (unidades mínimas de projeto e intervenção) que são transformados, conectados e/ou extrudados independentemente, em escala urbana, no que toca aos seus significados, funções, acessos e forma, uma vez realizados adequamentos estruturais. O resultado é um meio urbano mais permeável à insolação e à ventilação natural, além da criação de novos espaços e percursos urbanos, articulados em diferentes níveis e promovendo outros usos e funções comunitários.

Corte de quadra de Paraisópolis, com destaque para o redesenho dos interstícios urbanos. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

O projeto das fachadas também é importante, na medida em que constituem uma membrana entre os espaços internos e externos, ou também entre as esferas de vida privada e pública. Como uma estrutura de transição, as fachadas devem promover, simultaneamente, níveis confortáveis de salubridade, acesso a sol e ventilação nos espaços internos, e estruturas e equipamentos que catalisem a vida urbana nos espaços externos. A proposta é fortemente baseada em tecnologias e materiais locais, e incentiva, portanto, o DIY (do-it-yourself).

Perspectiva da requalificação das fachadas em Paraisópolis. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro
Detalhe de fachada feita com materiais comuns, mas com garantia de desempenho ambiental e urbano interna e externamente. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

Comparadas a artérias do organismo favela, as vielas são requalificadas tomando por base as práticas cotidianas da favela, desenvolvidas pelos habitantes como forma de adaptação ao ambiente às suas reais necessidades. A proposta prevê, desta forma, o fortalecimento das estratégias existentes, e a articulação a novas.

A perspectiva a seguir constitui a proposta de requalificação da Viela Francisco Clemente, destacando uma série de ferramentas ambientais, urbanísticas e sociais de promoção de um território melhor: arte de rua, pintura das fachadas das casas e padronização da numeração, fortalecendo o senso de pertencimento da vizinhança; espaços de compartilhamento de objetos; pequenos equipamentos comunitários, como biblioteca, centro de reciclagem, área para desenvolvimento de agricultura urbana, bicicletário, tela para projeções ou, simplesmente, um espaço para sentar, conversar, brincar e interagir, promovendo vida urbana; coleta e reuso de água da chuva; biovaletas e jardins de chuva.

Perspectiva da requalificação proposta para viela de Paraisópolis. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

Além dos becos e vielas, as ruas formais constituem grandes oportunidades para ressignificação urbana, mesmo que temporária, promovendo e estimulando diferentes funções em períodos e dias específicos, como uma feira livre, um campinho de futebol, um espaço para manifestações artísticas e culturais, e até mesmo uma área reservada para mesas de bares e restaurantes durante o almoço ou no final da noite. O objetivo é o de devolver às ruas o senso de espaço público em essência, articulado também com calçadas melhores, bancos, áreas sombreadas e vegetação urbana.

Perspectiva com estratégias de projeto para as ruas formais de Paraisópolis. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

Portanto, o redesenho busca entender os espaços entre os edifícios e então experimentar diretrizes e estratégias para torná-los, efetivamente, uma infraestrutura ambiental, urbana e social, que catalise a melhoria desta realidade.

Futuro...

Por fim, a proposta clama por novos direitos a serem garantidos à favela, não apenas os direitos considerados “primários para os pobres”, mas direitos a vida e paisagem urbanas, a oportunidades ambientais e adaptabilidade. E isso tem muito mais valor quando nos damos conta de que a favela não é algo posto à parte da cidade, pelo contrário, a favela integra a cidade, e é a cidade em si mesma, apesar das singularidades.

Além disso, deixando de lado excessivas romantizações, a proposta provoca arquitetos, urbanistas, acadêmicos, poderes público e privado, e sociedade em geral, ao questionar quais seriam as lições a serem aprendidas com as favelas, para o desenho de novos futuros para a cidade como um todo.

Uma Paraisópolis do futuro. Image Cortesia de Eduardo Pimentel Pizarro

Notas
[1] As perguntas foram realizadas pessoalmente, ou através de email, ao longo de 2013 e 2014.
[2] IBGE, 2010.
[3] Sehab, 2011.
[4] De acordo com a União dos Moradores de Paraisópolis.
[5] A proposta aqui apresentada foi desenvolvida como mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAUUSP, e na Architectural Association Graduate School, AA (Londres), sob orientação da Prof. Dra. Joana Carla Soares Gonçalves, e financiamento da FAPESP.
O projeto foi premiado com o 1st Prize da LafargeHolcim Foundation (Zurique, Suíça), durante o evento 5th International LafargeHolcim Forum for Sustainable Construction, que aconteceu em Detroit (EUA), de 7 a 9 de Abril de 2016. A premiação tem o objetivo de reconhecer projetos inovadores das novas gerações de arquitetos e engenheiros de universidades de ponta ao redor do globo, como MIT (EUA), ETH (Suíça) e Tongji University (China). Os projetos foram votados por mais de 250 profissionais, de 40 países.

Referências
PIZARRO, E. P. Interstícios e interfaces urbanos como oportunidades latentes: o caso da Favela de Paraisópolis, São Paulo. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. 

Eduardo Pimentel Pizarro é arquiteto e urbanista, doutorando e mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, com pesquisa sanduíche na Architectural Association Graduate School (Londres). Ganhador do 1st Prize na LafargeHolcim Forum Student Poster Competition (Detroit, 2016) e do Prêmio Jovem Cientista (Brasília, 2012).

Sobre este autor
Cita: Eduardo Pimentel Pizarro. "De interstícios a infraestruturas / Eduardo Pimentel Pizarro" 10 Jun 2016. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/788950/de-intersticios-a-infraestruturas-eduardo-pimentel-pizarro> ISSN 0719-8906

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