Cinema e Arquitetura: "Divergente"

Dentro do cinema atual existe uma febre pela adaptação de sagas literárias juvenis. "Divergente" faz parte deste âmbito para criar uma série de filmes cada vez mais rentáveis economicamente. A recorrente comparação com "Jogos Vorazes" diminuiu sua originalidade devido a similaridade do seu argumento, entretanto, ambos apresentam características próprias que os tornam únicos e oferecem panoramas muito diferentes quanto seu desenvolvimento. Particularmente, "Divergente" mostra um contexto mais palpável e completo, que nos permite analisá-lo a fundo. 

A trama nos situa em uma realidade daqui a cem anos. Diferentemente das realidades altamente tecnológicas ou apocalípticas que a ficção científica geralmente representa, vemos uma cidade de Chicago congelada no tempo. Seu skyline se mantém firme sobre o horizonte, e nele, vemos os estragos de um conflito marcado na sua estrutura como se fosse uma radiografia. Os caminhos foram destruídos e o grande lago Michigan foi substituído por um deserto que rodeia a cidade até perder-se no horizonte.

Isolada do resto do mundo, observamos uma cidade pós-moderna, que tanto por necessidade como por ideologias tornou-se sustentável com seu entorno, cumprindo com sonhos utópicos do século XX. Seu céu está cheio de contaminação e suas ruas livres de veículos. A dependência em relação aos combustíveis fosseis foi substituída graças as inúmeras turbinas conectadas aos arranha céus.

A cidade moderna, a cidade das máquinas tornaram-se uma lembrança de tempos caóticos e conflitivos. Na nova cidade, mais compacta e humana, move-se a pé ou utilizando o trem que cruza, sem paradas, a cidade. As ruas transbordam de vitalidade conforme as pessoas recuperam o pertencimento do espaço público. A rua converte-se em um espaço de comunicação, de recreação, um lugar seguro para caminhar e desfrutar da vida em sociedade.

Porém, para criar tal utopia, a sociedade viu serem eliminadas certas liberdades individuais em busca de um bem comum. Evitando os males que levam a conflitos, as pessoas são classificadas dentro de facções, as quais através de um determinismo genético procuram explorar as qualidades individuais em um estilo de vida predeterminado. Não há liberdade de rumo além de uma única etapa na vida.

Atualmente, esta classificação pode ser vista como uma prisão silenciosa da personalidade, entretanto, na nossa realidade, este tipo de situação já acontece. Nosso próprio sistema procura encarcerar-nos dentro de escritórios, de carreiras técnicas ou graduações, nos especializando a ponto de não saber desempenhar ou explorar outras qualidades ou interesses pessoais.

Conforme a trama segue, vemos a fragilidade do sistema para manter o controle. Cansados de um governo pacífico que não consegue controlar sua população, os eruditos desenvolvem um novo sistema que elimina as impurezas do ser humano através da supressão total da personalidade humana. Sua visão sobre a sociedade é desumana e as pessoas não são mais do que engrenagens dentro de um mecanismo maior.

A racionalidade cria um retrocesso até a modernidade. Incapazes de compreender a ambivalência do ser humano, a sociedade aplaude características como a eficiência ou o rendimento acadêmico, deixando como secundários ou depreciáveis a sensibilidade criativa e o desenvolvimento emocional. O filme, neste aspecto, não é uma advertência ao futuro, mas sim ao presente da nossa sociedade, que tende à robotização e cuja liberdade é um véu opaco nos olhos da sua população.

Perfil do Diretor

Neil Burger é um diretor de cinema americano, nascido na cidade de Connecticut. Estudou e graduou-se na Universidade de Yale, obtendo o título em Belas Artes. Posteriormente, dedicou-se ao cinema experimental na década de 80, destacando-se na direção de vídeos musicais para bandas de gênero alternativo e finalmente, aproximando-se da emergente rede MTV com a ideia de criar e dirigir campanhas publicitárias. 

Na entrada no novo século, ele encarregou-se de dirigir e escrever o filme "Entrevista com o Assassino", que ganhou o título de Melhor Filme no festival de cinema de Woodstock. Isto lhe trouxe um grande renome na indústria e levou-o a dirigir o filme de ambientação vitoriana "O Ilusionista", preciso na sua recriação histórica. Com ele, levou um grande golpe moral diante da injusta distribuição do filme, que foi posto em cartaz juntamente com "O Grande Truque", de temática similar, reduzindo sua arrecadação. 

Seu próximo projeto destacado foi no ano 2011, com "Sem Limites", filme de um ineditismo surpreendente e protagonizado por Bradley Cooper. Este novo êxito o colocaria na cadeira de diretor de "Divergente", início da adaptação de uma saga literária. Apesar do êxito que foi, Burger tomaria a decisão de abandonar o projeto, procurando não ser estigmatizado no setor comercial.

CENAS CHAVE

1. Congelada no Tempo

Cem anos após um grave conflito mundial, Chicago mantém seu icônico skyline intacto ao isolar-se do resto do mundo. O grande lago Michigan secou e converteu-se em um deserto.

2. Autópsia de um Conflito

Grande parte da cidade apresenta danos severos que refletem o resultado das guerras passadas e a impossibilidade tecnológica da sociedade atual em reconstruí-la.

3. Medo e Desconhecimento do Exterior

Para proteger-se dos perigos além do seu território, uma grande muralha elétrica rodeia a cidade. Mas, ao mesmo tempo que isola a população do perigo, a mantém incomunicável e vulnerável.

4. A Nova Escala da Cidade

A vida já não acontece na altura dos arranha céus, arqueologia de épocas passadas, mas sim no solo. A escala da cidade é humana, compacta e caminhável. 

5. A Cidade do Vento

Para satisfazer suas necessidades energéticas, a cidade aproveita os fortes ventos característicos da sua região através de turbinas acopladas sobre os arranha céus abandonados.  

6. Realidade Pós-moderna / Cidade Sustentável

Como única forma de sobreviver, a cidade abandona os paradigmas da modernidade, incluindo o uso indiscriminado do veículo automotor, que é destinado somente a tarefas específicas. 

7. A Nova Cara do Sistema Viário

Desaparecido o veículo automotor, as ruas parecem amplas e desobstruídas. Livres, convertem-se em transitáveis para toda a população que goza de tranquilidade e ar puro na vida diária. 

8. A Cidade como Espaço Lúdico

Livre de automóveis, a cidade converte-se em um grande espaço público, cujas velhas estruturas cobram uma nova escala mais lúdica e estão a serviço dos seus habitantes para desenvolver-se. 

9. Transportes Humanizantes

A Chicago de hoje em dia possui fortes políticas em prol da bicicleta e transportes coletivos, o que se reflete no trem, limpo e silencioso, que percorre a cidade no filme.

10. Sociedade Progressista porém Determinista 

A sociedade dentro do filme luta por eliminar os males da sociedade atual, mas mostra uma obsessão em classificar seus cidadãos segundo suas capacidades inerentes em sua genética. 

11. Chicago, a Cidade-Estado

Buscando a ordem, o governo imita os modelos da sociedade clássica, o que reflete-se na estética da sua arquitetura. A sala de eleições está baseada no arquétipo do teatro grego.

12. A Arquitetura do Interior

Antes da cerimônia, a protagonista recebe um diagnóstico para conhecer a si mesma. A sala dos espelhos simboliza o caráter fractal e intrincado da personalidade humana.

13. Cordialidade / Autossuficiência e Harmonia

Aqueles dedicados ao campo, advogam por uma sociedade livre e pacífica. Sua estética é colorida e lembra muito o movimento Hippie. São artistas extrovertidos que defendem a neutralidade.

14. Verdade / Justiça e Honestidade

Ensinam a lei dentro da cidade. Vestem-se de branco e preto, o caráter dual da justiça. Sua arquitetura faz referência a cultura clássica de onde nasceram seus princípios ideológicos. 

15. Erudição / Inteligência e Tecnologia

São os científicos e técnicos da cidade. Têm sede de conhecimento e costumam ser orgulhosos. Refugiam-se em estruturas de um grande desdobramento construtivo da época passada.

16. Livraria The Joe and Rika Mansueto 

A bela biblioteca é utilizada como quartel principal de Erudição. Moderna e limpa, sua estrutura de alta tecnologia confere um caráter espacial icônico dentro da cidade real.

17. Ousadia / Valentia e Militarismo 

São a polícia e milícia da cidade. Sua estética é rebelde, de roupa negra e justa. Habitam na velha zona industrial da cidade, com especial localização dentro de uma gruta mineira. 

18. Ambientação Opressiva e Industrial

Treinados como soldados, seus quartéis precisam de adornos, são frios e desumanizantes, onde predomina o concreto e aço. São comunitários e não há distinção alguma de sexo.

19. A Perda do Desenvolvimento Industrializado

A nova sociedade, ainda que sustentável, é incapaz de recuperar o desenvolvimento do passado. A grande sala de jantar é um antigo tanque de água reciclado.

20. Fortes e valentes, porém cruéis e sem piedade

Antigas fábricas abrigam a área de treinamento onde os ousados combatem. Dentro de um sistema cruel, não há lugar para os fracos, é uma sociedade predatória.  

21. Renúncia / Generosidade e Autossacrifício

À frente do governo, devido seu caráter altruísta. Vestem-se de cinza, escondendo sua figura e qualquer rastro de vaidade. Sua arquitetura é monolítica, sem revestimento ou adorno estético. 

22. Arquitetura Atemporal e Sem História

Negando toda estética, seu habitat se desprende do resto da cidade reciclando velhos materiais. Possuem um só tipo de moradia que apenas satisfaz as necessidades básicas. 

23. O Governo do Imaterial

O modo de vida de renúncia lembra os antigos conventos cristãos. Mesmo carentes de religião, é possível perceber neles a busca por uma força transcendental. 

24. Sem Facção / Marginalizados do Sistema

São aqueles que fracassaram em integrar-se com o sistema ou refugiados do exterior. Destinados a ser mão-de-obra barata, vestem-se como indigentes em áreas abandonadas na cidade.

FICHA TÉCNICA

Data de Estreia: 20 de março 2014
Duração: 139 min.
Gênero: Ação / Ficção Científica
Diretor: Neil Burger
Roteiro: Evan Daugherty / Vanessa Taylor
Fotografia: Alwin H. Kuchler
Adaptação: Divergente livro, Veronica Roth

SINOPSE

Em um futuro incerto, a humanidade tem estado a beira da extinção devido a uma série de guerras. Chicago é uma das poucas cidades em pé, onde a sociedade dividiu-se em cinco facções cujo propósito é erradicar os males que levam aos conflito.

Beatrice Prior, nos seus 16 anos, deve escolher a qual facção pertencerá pelo resto da sua vida, dividida entre sua família e seus desejos mais reprimidos. Tal situação se complica quando, nas provas preliminares, sua personalidade não pode ser rotulada e por tanto se torna uma ameaça latente para o sistema estabelecido. 

Sobre este autor
Cita: Altamirano, Rafael. "Cinema e Arquitetura: "Divergente"" [Cine y Arquitectura: "Divergente"] 27 Mar 2015. ArchDaily Brasil. (Trad. Sbeghen Ghisleni, Camila) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/764317/cinema-e-arquitetura-divergente> ISSN 0719-8906

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