O Ofício da Crítica / David Leatherbarrow

«No prefácio de uma antologia da literatura russa, Vladimir Nabokov declarou que não havia encontrado uma só página de Dostoievsky digna de ser incluída. Isso quer dizer que Dostoievsky não deve ser julgado por cada página, senão pela soma das páginas que compõem o livro.» —Jorge Luis Borges[1]

«crisis, critic, critical, criticism, criticize, critique:
1.
crisis é a tradução latina do grego Krisis, um crivo, de krinein, crivar...
2. o grego
Krisis tem como adjetivo kritikos, capaz de discernir –julgar– discutir, logo um crítico...» —E. Partridge[2]

Das muitas abordagens ao problema da crítica arquitetônica contemporânea que se poderia empreender num estudo tão curto quanto este –declarando sua finalidade, distinguindo-o de outras formas de escritura ou discurso, ou descrevendo sua história, estado atual, e prospecto– a linha que seguirei é prática. Vejo a crítica como um ofício, praticada com seus próprios instrumentos e operações. A crítica escrita será meu foco principal, mas também tenho em mente o que um professor ou arquiteto diz quando se confronta a um projeto que precisa de um “crivo'' de boas e más decisões e alternativas. Acredito que profissionais e professores, não menos que escritores, praticam este ofício e devem. Sem ele, os projetos não progridem, os alunos falham em aprender, e os estudos perdem sua força. Sou dificilmente original em argumentar sua necessidade e nem o primeiro em assegurar sua vantagem na prática profissional. O poeta inglês Alexander Pope descreveu a crítica como “a empregada da musa.”

Apesar desse precedente, minha ligação com a crítica e a criatividade é plausível de ser rejeitada em alguns cantos, especialmente entre aqueles que reclamam ou anunciam originalidade. De acordo com uma concepção de obra artística que emergiu no período romântico mas ainda é promovida hoje, obras inventivas resultam de exercícios experimentais ou exploratórios, não no sentido científico, mas no sentido “sem fim” da palavra. Ao contrário de experimentos controlados, as explorações criativas são incertas em sua direção e resultado porque são essencialmente espontâneas ou se diz ser. Exercícios que não são planejados ou forçados são também desprovidos de julgamentos reflexivos –especialmente julgamentos oferecidos por alguém diferente do arquiteto. Decisões de qualquer tipo não estão assim excluídas; desde o Período Maneirista, os artistas criativos permitiram-se ao “julgamento do olhar”. A intuição pode bem ser a linha base da crítica artística, se, de fato, ela merece esse nome. O argumento em favor da invenção leiga e irreflexiva é paralelo à ideia de que os indivíduos treinados no projeto entram ao ensino (ao estúdio de “dar critérios”), porque lhes falta o talento à prática criativa. De acordo com isso, a crítica é “um sintoma, se não uma causa, da impotência criativa.”[3] Espero mostrar que essa premissa é falsa, e que há um núcleo imaginativo, produtivo, ou criativo na crítica, que ele, também, é um “modo de fazer”, inclusive de fazer mundo. Também sustento que a arquitetura é enriquecida pelo ofício do crítico –o que significa, a propósito, que o campo é empobrecido por sua ausência.

Uma defesa especial para a crítica de arquitetura parece ser requerida por ainda outra razão: a natureza da própria obra de arquitetura, a permanência relativa do edifício, sua fácil acessibilidade e clara visibilidade. Considere o tópico comparativamente. Formas programadas de arte –refiro-me a atuações que começam e terminam (música e dança) juntamente com aquelas que “funcionam” sobretudo esteticamente (poesia e pintura)– parecem convidar e se beneficiar da crítica mais do que a arquitetura. A crítica rebobina o relógio do primeiro par, enquanto as pedras do edifício simplesmente permanecem imóveis, e a avaliação e a interpretação familiarizam o segundo par, com a fácil acessibilidade do edifício como seu modelo. Porém, temporal e estética são apenas dois dos tipos de distância que a crítica nas outras artes domina. Paul Celan, o grande poeta alemão do século XX, certa vez descreveu seu verso como uma “mensagem numa garrafa”. Hans-Georg Gadamer, explicando como tal comunicação deve ser lida a fim de ser compreendida, reconheceu que o leitor (que deseja aprender não somente confirmar) deve “ponderar, imaginar, e restaurar” o poema, até que finalmente o tenha decifrado e possa ler e ouvi-lo com propriedade, “talvez até corretamente.”[4] Gadamer não diz exatamente, mas o tempo em Celan sugere que as mensagens poéticas são sempre incompletas e que o encontrar a garrafa e sacar a rolha fazem parte da interpretação. O conhecimento da língua alemã é necessário para ler Celan, como do francês para René Char, e do inglês para Seamus Heaney, assim como o são para a leitura de jornais, mas compreender sua poesia requer um pouco mais de penetração. Paciência permite uma compreensão plena, e uma leitura lenta auxilia. Imaginação é ainda mais importante. Por imaginação, quero dizer a maneira de pensar que repetidamente se afasta e logo retorna ao texto a fim de descobrir o vasto espectro ou completa amplitude de suas implicações. A imaginação paciente não pode ser descartada porque o sentido de um poema é raramente apreendido de uma só vez; seus significados emergem sucessivamente e se acumulam apenas após uma série de escutas ou leituras. Para Heaney, poemas são “preocupações.”[5] Seu termo sugere estadia longa, quase interminável interesse; talvez também a necessidade de decifração, como Gadamer propôs, decifração que a crítica pode seguramente auxiliar. O mesmo poderia ser dito para as pinturas, já que elas também aparecem diante de nós como “mensagens numa garrafa” (encontrada num museu e aberta com fascinação), que encorajam repetidas visões interpretativas. As melhores fornecem novos significados continuamente. Grandeza em pinturas e poemas é medida por sua ilimitada generosidade e sua irrestrita doação de sentido. Tudo o que precisam é que você continue olhando ou ouvindo –criticamente.

Outros tipos de obra artística também parecem mais dependentes da crítica que a arquitetura. Por comparação com a permanência relativa dos edifícios, peças, danças, e concertos começam, desenvolvem-se, e chegam a um fim de acordo com uma agenda que é mais ou menos conhecida com antecedência. O fim dos maus, por exemplo, pode não chegar tão cedo. Porém, bom ou mau, os fins das chamadas obras temporais são geralmente seguidos por recontos, avaliações, comparações, e interpretações, em outras palavras: crítica, que prevê elogio ou seu oposto, também apropriação, e melhor entendimento. O habitar, a modalidade básica do sentido arquitetônico, é, por contraste, imprevisto. Evidentemente, os programas (que se desvelam no tempo) são fornecidos e acomodados por obras construídas, mas seus desvelamentos preveem repetições sem fim. O que é mais, a experiência prolongada induz familiaridade, que por sua vez parece impedir a avaliação ou torná-la gratuita. Pelo menos, isso é o que uma reflexão preliminar sobre a crítica em arquitetura, como oposta às outras artes, parece sugerir.

No entanto, apesar das diferentes maneiras que as várias artes apresentam-se à experiência, edifícios compartilham com poemas, pinturas, e atuações o fato de que os bons são sempre mais interessantes do que parecem à primeira vista, como se as ofertas que inicialmente pareciam tão óbvias secretamente abrigassem outras que não eram. Isso é, em parte, uma função de tamanho. Todas as configurações contidas num edifício não podem se tornar aparentes num instante. O mesmo é verdade para as qualidades mais focalizadas do edifício. Meu primeiro ponto é que a própria espacialidade do edifício, sua extensão,ou combinação de configurações naturalmente dá origem à crítica. O habitar prosaico negligencia as condições que estão além de seu marco imediato de referências. Embora preocupado com o menu antes da refeição, tenho pouco interesse na cozinha, menos ainda na despensa, e nenhum no quintal dos fundos. O uso de um ambiente, não dos outros próximos, assume uma hierarquia de interesses, pelo qual o primeiro tem grande importância e os outros dificilmente alguma. A crítica supera essa negligência construindo uma imagem mais completa. Uma construção ou compensação como essa pode ser chamada função registrar da crítica, por meio da qual uma totalidade inteligível é definida, e toda a gama de aspectos significativos do conjunto é registrada para estudo e entendimento. O registro dá à obra um tipo diferente de durabilidade do que seus materiais permitem. Apesar de pedra e aço serem dificilmente efêmeros, a crítica, particularmente a crítica escrita, dota a obra com uma permanência ainda maior. Tal como a famosa observação de Victor Hugo sobre a arquitetura após Gutenberg: “o livro de pedra, tão sólido e tão duradouro, estava para ceder lugar ao livro de papel, ainda mais sólido e duradouro... quem não admite que nessa forma o pensamento é infinitamente mais indelével?”[6] Registrar também envolve um processo de conversão através do qual as qualidades espaciais e materiais da obra são traduzidas a outro meio: linguagem escrita ou falada.

Porém a execução dessa primeira tarefa conduz a uma segunda. Registrar apenas prepara o terreno para a criação de um relato crítico. Um reconstruir deve seguir os dados iniciais. Durante essa etapa, o labor de observar os aspectos particulares de um projeto cede lugar a imaginar sua coerência –e não somente sua coerência física. A reconstrução crítica resulta numa nova visão do projeto, uma que é mais completa que a compreensão que o habitar fornece, mas não uma que seja tão excessiva quanto os resultados do registrar minucioso. De fato, alguma antecipação de uma possível reconstrução é necessária para a seleção das condições que devem ser registradas. Mais importante, essa segunda etapa é produtiva, pois resulta numa imagem que não pode ser diretamente observada na obra em si, ainda que sua adequação seja sempre medida a partir da obra.

A terceira operação que é essencial à crítica é uma que eu chamarei reposicionar. Obviamente, toda obra construída tem a sua própria localização na cidade ou na paisagem uma vez construída. Grande parte dos projetos é concebida para locais singulares também. O posicionamento realizado pela crítica é menos territorial que cultural; sua função é situar a obra entre outras de seu tipo, aquelas que são similarmente melhores ou piores. A principal dificuldade dessa etapa é que não há padrão absoluto ou cânone com base no qual as determinações de status ou ordem possam ser feitas. Crítica, tal qual eu entendo, é uma forma de desenvolver ou descobrir as condições únicas nas quais suas próprias avaliações são feitas. Sei que isso é paradoxal –fundar um julgamento em premissas que estão sendo descobertas– talvez até ilógico. No entanto, é por meio da obra em si (não de uma teoria dela) que o crítico entende um pouco mais claramente algumas questões básicas sobre arquitetura e seu lugar no mundo. Tendo brevemente introduzido essas três operações –registrar, reconstruir e reposicionar– deixe-me agora explicá-las mais plenamente.

Para ser útil e persuasiva, a crítica em arquitetura deve ser adequada aos aspectos únicos do projeto. Crítica não oferece teorias gerais, impressões ou opiniões comuns, ou pelo menos não individualmente, se é que elas têm realmente lugar. A adequação de um relato é medida por sua precisão com respeito à obra particular que está sendo criticada e a suficiência das informações que o relato registra. Por exemplo, esperamos que a crítica nos forneça informações corretas e razoavelmente completas sobre os diversos agentes responsáveis pela concepção e construção de um interior, uma fachada ou um pátio. Informações desse tipo são explicativas e deveriam possuir um alto grau de transparência. Do mesmo modo, esperamos que a crítica nos forneça um registro claro dos espaços, materiais e usos que são particulares ao projeto. “Sabedoria recebida” é inadequada já que é frequentemente deficiente de detalhes e excessiva em suposições e inferências. A tarefa que o crítico realiza é a de “afinar o registro” e apresentar uma imagem tão completa quanto possível. Isso exige trabalho. Visitas devem ser feitas, entrevistas conduzidas e documentos revistos para que a história fornecida seja confiável. Uma observação atenta é também requerida, assim como a abertura para evidências imprevistas. Porém, dada a abundância potencial de informações, discernimento também é necessário. O crítico deve determinar quais fatos são significativos, ou seja, quais são necessários para a construção de uma imagem inteligível. De acordo com meu título seguinte, reconstrução, irei explicar como as decisões sobre relevância definem limites na objetividade da escritura crítica. Mas, antes disso, a questão da “conversão” requer elaboração.

A crítica verbaliza a arquitetura. Esse processo pode ser visto como análogo a outros tipos de registro, uma fotografia ou transcrição de áudio, por exemplo, por meio dos quais uma composição de visões ou sons é convertida numa forma que é mais permanente e amplamente acessível. Um caso óbvio é o registro de um concerto. Tal registro altera algo desfrutado (ou sofrido) por algum tempo em algo amplamente acessível e permanente. A conversão que ocorre na crítica arquitetônica é do visual aos tipos verbais do sentido: a rua que nos cerca é transcrita para a página, e a fachada diante de nós é reformatada para discussão. Obviamente, uma abreviação das qualidades é necessária para uma tradução desse tipo, e mesmo alguma violência com o “original”, porém compensando o que seja perdido há um ganho em acessibilidade, pois um registro verbal pode ser compartilhado mais amplamente do que a própria rua ou fachada. Aqui, a palavra “original” deve ser colocada entre aspas, porque poucos projetos, se é que algum, são desenvolvidos na ausência de crítica, o que significa que não há nenhum projeto anterior ou não verbal, incontaminado pela reflexão, apesar dos clamores por uma criatividade livre do juízo reflexivo. Como uma forma de registro, a crítica é o caminho discursivo pelo qual projetos particulares entram numa comunidade de discurso, que é muito mais ampla e abrangente do que o círculo de pessoas que visitaram um edifício. Escrevendo para outros, o crítico reconhece e estende a dimensão pública da arquitetura, uma dimensão que considero essencial. Que a transcrição envolva abreviação não pode ser negado. Nem pode o risco da parcialidade ser evitado, pois a verbalização depende inteiramente de uma “redução” dos incidentes e aspectos encontrados na experiência prosaica. “Registros” adequados são aqueles que reduzem a probabilidade de enganos que resultam da seleção de detalhes e sua re-presentação em conjunto.

Mesmo que o registro cuidadoso seja necessário para o desenvolvimento da crítica, isso é insuficiente. Nem é o texto mais inteligível o que fornece a maior quantidade de informações sobre um edifício. Provavelmente será um pouco confuso descrever o processo pelo qual um relato útil é formado em quanto reconstrução porque a obra que serve como alvo da crítica já está construída ou pelo menos projetada em algum nível, caso contrário não haveria nada para criticar. Mas à medida que alguns e não todos os aspectos de uma obra são selecionados para consideração, pode-se dizer que a crítica refaz o projeto, oferecendo ao debate e à interpretação uma nova forma. Tive esse passo em mente quando declarei que a imaginação é requerida na crítica. Isso também reafirma a presença da obra no domínio público. As habilidades que realizam a reconstrução são diferentes daquelas do registro. A observação não é fundamentalmente importante; em vez disso, a seleção. Em seguida, as conexões devem ser formadas ou a continuidade deve ser estabelecida entre os elementos ou aspectos selecionados, criando uma configuração. A objetividade do crítico atinge seu limite precisamente nesse ponto, mas é um limite que é interno ao processo, pois a seleção já estava envolvida nas decisões sobre quais fatos deveriam ser registrados e mesmo se o projeto merecia ou não críticas; afinal, nem todos os projetos são igualmente interessantes, muito menos significantes.

Se nem todos os fatos que podem ser observados são igualmente importantes no desenvolvimento de um relato crítico, que detalhes, opiniões, situações e acontecimentos da obra construída devem ser elevados ao nível da significância? Não há uma resposta simples para essa pergunta, nem uma que possa ser generalizada para uma ampla gama de projetos. Uma dupla contingência governa decisões sobre a adequação: a particularidade do trabalho e a história que ele conta (conforme relatado pelo crítico). Certos aspectos são mantidos no registro porque são os únicos que devem estar juntos na composição de uma imagem legível. Um aspecto importante da legibilidade é a continuidade entre as partes do projeto que foram destacadas (mesmo se a premissa básica do projeto seja a descontinuidade espacial ou a fragmentação). Comentando sobre a fachada do American Folk Art Museum, em Nova York, Billie Tsien disse que gostaria que a fachada do edifício dissesse: “Olhe para mim, não sou o que você pensa que eu sou”. O que a crítica pode oferecer em resposta a essa alusão sobre a intenção do arquiteto? Como algo inteligível a ser proposto, os documentos corretos devem ser reunidos e interpretados: o corte longitudinal da edificação precisa ser estudado, também alguns de seus detalhes construtivos, assim como o plano de acabamentos para seus materiais, uma planta das várias entradas da edificação, em conjunto com vistas através delas, um mapa e vistas da rua frontal, e assim por diante... todos os documentos que ''se interligam'' num relato inteligível da fachada. Outros detalhes, fotografias ou croquis, apesar de sua facticidade, podem bem ser uma distração; não errado, apenas imprestável. A própria arquiteta deve ter selecionado um conjunto de documentos que sustentaram sua leitura, e ao fazê-la estava assinando uma crítica, e portanto reafirmando o edifício como uma imagem a ser discutida no que eu chamei a comunidade do discurso. A “subjetividade” de tal seleção e reconstrução não pode ser negada, mas é uma que está restringida pela evidência em registro. Além disso –e de modo importante– as histórias que a crítica apresenta são para os outros ouvirem e lerem, outros que podem ou não conhecer o edifício que está sendo descrito, mas sabem algo sobre a arquitetura e o mundo em que está construída. Reconstrução é portanto também relocação, através da qual a obra singular é reposicionada entre outras do seu tipo; não somente aquelas que sejam similarmente boas ou más, mas mais amplamente aquelas que possam atrair outras obras de arquitetura. Neste ponto, a crítica invoca premissas básicas, que são fundamentalmente filosóficas.

Se as normas convencionais de durabilidade, uso e aparência de um edifício são pensadas para formar o horizonte de avaliação, nenhum treinamento especial ou faculdade de apreensão é requerido à crítica arquitetônica. Todos nós fazemos isso quando confrontados com os edifícios em que vivemos, visitamos, ou simplesmente observamos. Não há problema algum aqui. Conhecimentos amplamente partilhados de situações típicas permitem que cada um de nós diga se os materiais deste edifício são frágeis, os dormitórios são estranhamente organizados, ou as imagens parecem fora do lugar. No entanto, a crítica que merece o nome –pois enriquece a disciplina– faz algo diferente. Julgamentos cotidianos ou pré-profissionais não estão errados, apenas carecem de penetração, pois as normas que pressupõem são elas próprias temas para a crítica. Certamente, normas convencionais estão sujeitas a mudanças. Já no século XVIII, David Hume argumentou em seu curto tratado sobre a maneira como os padrões variam ao longo do tempo, embora eles pareçam ser tão óbvios e naturais em seu momento histórico. O paradoxo da crítica é este: os fundamentos para avaliar obras individuais são assumidos e redefinidos no processo de desenvolver a crítica.

Embora singular, toda obra sob revisão crítica é reposicionada entre outras; não somente aquelas que estão próximas fisicamente, mas obras do mesmo tipo. O que Aldo Rossi afirmou sobre comparação tipológica –que presume seus próprios princípios de associação– também pode ser dito da crítica: comparação pressupõe um mergulho na semelhança. A diferença significativa entre o crítico profissional e o não profissional é que o primeiro opera dentro de um vasto horizonte ao julgar as qualidades do projeto em particular, enquanto o outro, pelo contrário, faz avaliações dentro de um quadro mais local. Um amplo escopo é natural ao crítico pois tanto o ofício como a vocação surgem de um profundo interesse no campo “tal como é”, ou seja, a arquitetura em si. A preocupação do crítico é com a obra em quanto obra, como ela contribui para a disciplina como um todo, e como nosso entendimento da arquitetura é enriquecido ou aprofundado pelo projeto em consideração. Além disso, o interesse do crítico no campo estende um interesse mais básico no mundo ao que a obra contribui, o mundo ou a cultura que herdamos e que gostaríamos de aprimorar. Quando é bem feita, a leitura da crítica não se limita aos professores e profissionais. O que é mais, quando a leem, os próprios arquitetos são levados a considerar o edifício em seu contexto mais amplo, a considerá-lo histórica, ambiental e politicamente. Essa tarefa confere à crítica sua função de construção de mundo.

Embora a crítica não seja nem filosofia nem teoria, ela implica ambas. Ainda que menos profunda do que essas duas, suas interpretações têm mais imediatismo e efeito, pois as conclusões feitas sobre projetos específicos não só permitem que os arquitetos redefinam as premissas sobre as quais trabalham, mas também indicam a relevância que tais projetos têm sobre o mundo em que foram realizados. Quando o crítico compara um edifício singular com outros, a natureza de uma obra arquitetônica é vista de uma nova maneira. O conhecimento convencional não é anulado, mas alterado, para que novas possibilidades venham à vista e velhas suposições (velhas premissas, normas, padrões) descubram que têm limites. Novamente, um reposicionamento desse tipo não é teorético; nem, isso precisa ser dito, é empírico ou objetivo. Embora o ofício da crítica em seu nível mais alto atinja as fronteiras da ciência e da filosofia, ele leva sua relevância desde pontos de referência estabelecidos na atualidade do projeto, na cadência e na prosa da vida cotidiana.

Notas
[1] Jorge Luis Borges, Fyodor Dostoievsky.
[2] E. Partridge, Origins.
[3] Esta acusação é apresentada e rejeitada por T.S. Eliot em The Use of Poetry and The Use of Criticism (Londres: Faber and Faber, 1933), p. 20.
[4] Hans-Georg Gadamer, Gadamer on Celan (Albany: State University of New York Press, 1997), p. 63.
[5] Seamus Heaney, Preoccupations: Selected Prose 1968–1978 (Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1980), pág. 11. Ele confessa gostar de poemas que o levam a refletir sobre “questões preocupantes”. Outro dos seus títulos, Finders Keepers, expressa a mesma fascinação.
[6] Victor Hugo, ‘‘This Will Destroy That,’’ em Notre Dame de Paris (1832) (Londres: Heron Books, nd.), pp. 175, 182.

Referência:
David Leatherbarrow, “The Craft of Criticism”, em Journal of Architectural Education, pp. 20-21, 96-99, 2009.

Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi. Colaboração: Eduardo Souza.

Sobre este autor
Cita: David Leatherbarrow. "O Ofício da Crítica / David Leatherbarrow" 31 Jul 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/624983/o-oficio-da-critica-david-leatherbarrow> ISSN 0719-8906

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