Instante Decisivo - uma conversa com Fernando Guerra

Nesta entrevista-conversa originalmente publicada na página Paperhouses,o fotógrafo arquiteto Fernando Guerra , - considerado um dos melhores fotógrafos de arquitetura do mundo e que constantemente com seu irmão e sócio Sergio Guerra ( FG+SG - Últimas reportagens) compartilham seu trabalho conosco -, narra historias sobre a grande beleza de se fazer o que se gosta.

Paperhouses - Como decidiu ser fotógrafo de Arquitetura?

Fernando Guerra - Na realidade aconteceu quase por acaso… Rebobinando a minha história, quando eu cheguei de Macau depois de ter estado cinco anos a trabalhar como arquiteto, o Sérgio desafiou-me para fazer fotografia de Arquitetura. Na altura não havia qualquer oferta em Portugal a não ser o Rui Morais de Sousa em Lisboa e o Luis Ferreira Alves no Porto e esses dois fotógrafos chegavam amplamente para as encomendas dos ateliers. Só mesmo os ateliers de topo fotografavam as obras; não só não havia essa tradição como o mercado de revistas era muito básico.

É uma graça ver como tudo mudou…. E eu fiz um pouco parte desta mudança. Quando comecei a fotografar Arquitetura, eu e o Sérgio estávamos contracorrente. Na verdade não havia corrente nenhuma, porque simplesmente não havia interesse na publicação e não havia internet. Eu gosto sempre de lembrar que o ArchDaily surgiu em 2008 e portanto o fenômeno é verdadeiramente recente!

Quando nós começamos, o Sérgio via uma obra e eu imediatamente ia fazer fotografias, sem autorização… Depois o Sérgio telefonava para o atelier e perante o desinteresse deles dizia “mas nós já fotografamos”, o que os apanhava completamente de surpresa. Foi desta forma inesperada que fomos entrando, sem nunca pensar que as coisas tomariam o rumo que tomaram. Não há nada mas delicioso do que as coisas acontecerem!

Este negócio partiu portanto de uma paixão do Sérgio pela Arquitetura e minha pela fotografia e isso sempre foi e é o mais importante.

Edifício 360° / Isay Weinfeld. Image © Fernando Guerra | FG+SG

PH- A fotografia de Arquitetura é muitas vezes impessoal. Existe algum conflito entre a história das pessoas e a história da obra?

FG - Quando eu comecei queria simplesmente tirar fotografias. Nunca me interroguei sobre como fazer uma coisa ou outra; foi natural e foi crescendo ao mesmo tempo que a minha fotografia se ia desenvolvendo. Se hoje o meu registo é normal, em 2001 ninguém fotografava assim, tomando partido do instante decisivo, um pouco à Cartier-Bresson.

No meu registo, uma casa só faz sentido num momento, hora e instante. Isso faz com que a fotografia tenha interesse não só para os arquitetos, porque mostra bem o projeto, mas também para minha mãe, que não arquiteta, porque de repente ela olha e vê uma fotografia bonita; não é apenas uma fotografia de Arquitetura, é mais do que isso… e isso foi novidade.

Quando em 2004 eu estava a fotografar para a Wallpaper diziam-me secamente para não pôr pessoas nas minhas fotografias. É muito divertido ver que passados dez anos a Wallpaper usa fotografias minhas sem me pedir que altere nada como em geral usa fotografias com pessoas. Este género de fotografia é diferente daquela fotografia aborrecidíssima de Arquitetura que sempre se fez e que registava apenas alçados…

PH- Puramente descritiva…

FG - Se é só descritiva da Arquitetura, a fotografia não me interessa…

Casa em Cedeira / MYCC Oficina de Arquitectura . Image © Fernando Guerra | FG+SG

PH – Quando vai fotografar uma obra, existe um trabalho de preparação com o arquiteto, algo para além da vivência da própria obra?

FG - Não, para mim é muito importante o primeiro olhar numa obra. A partir do momento em que eu chego a uma obra num dia, recomeço do zero. Isso, claro, é um desafio.

O meu trabalho é trabalho de mensageiro; tenho de absorver o que está ali para transmitir a outros e ter a humildade de ver que aquele dia não é sobre mim mas é sobre a obra e o arquiteto. Esse encantamento do primeiro olhar e o sol é o que me guia. Assim ao longo do dia tento seguir o meu olhar e apanhar uma coisa bonita, a essência, o conceito.  Eu basicamente faço aquilo que as outras pessoas fazem em férias, viajo e tiro fotografias!

Ph- Mas isso e ótimo, transformou a paixão num quotidiano!

FG - É. A minha grande dúvida é como fazer disto um negócio diário e também, claro, como chegar fresco a uma obra quando fotografo todos os dias.

A minha relação com as obras é de um dia. No dia seguinte tenho outra obra, com se fossem pessoas diferentes com características diferentes.Transformei a minha paixão de miúdo no que tenho e no que sou hoje. Foi muito natural…

Museu Histórico de Ningbo / Wang Shu, Amateur Architecture Studio. Image © Fernando Guerra | FG+SG

PH- Existe um fio condutor entre o trabalho do Fernando de dezasseis anos e o teu trabalho hoje?

FG - Nada…

PH- Nem mesmo no que procura?

FG - Isso sim… O objetivo é o mesmo e alias eu continuo a misturar em exposições e catálogos fotografias que fiz hoje e em 2002 ou anteriormente. Mas na altura era tudo tão diferente…  Hoje não basta fazer uma fotografia bonita, é preciso fazer fotografias bonitas todos os dias, ser muito consistente. Por outro lado, as expectativas em termos da fotografia de Arquitetura em 2003 não têm nada a ver com as expectativas de hoje: um arquiteto há dez anos pedia-me para fotografar para um livro, não pensava na internet, hoje a internet é um meio fundamental.

Capela Santo Ovidio / Alvaro Siza. Image © Fernando Guerra | FG+SG

PH – A questão da propriedade intelectual na era da internet é uma questão complicada?

FG - Se não houvesse partilha o trabalho seria vazio. Um livro chega a 200 ou 300 pessoas mas a internet chega a muito mais. Hoje em dia as pessoas fazem reportagens a pensar na internet; há 5 anos atrás queriam sair na Casabella (bom, hoje também…) mas hoje perguntam pelo ArchDaily.

Em 2002 tinha um site com o meu nome fernandoguerra.com e senti a necessidade de mudar e ser mais do que um Eu. Em 2004 abri o Últimas Reportagens que para mim é uma biblioteca, não é um nome. Na altura todos os editores me disseram que ia ser o fim do meu trabalho porque sendo as fotografias gratuitas nenhum editor ia querer publicá-las. Olha pá, paciência, disse e ainda hoje mantenho que a partilha é essencial.

PH – Qual é a sua expectativa em relação à utilização dessa grande biblioteca que são as Últimas Reportagens?

FGEu ofereço as fotografias a toda a gente – estudantes ou pessoas que estão a fazer pesquisas sobre Arquitetura. A ideia do Últimas Reportagens é guardar a informação perpetuamente, mesmo depois de eu morrer. No fundo, a minha obra não é nenhum prédio que possa ser demolido ao fim de trinta anos…

PH - Nem é preciso ir a Torre do Tombo para ver…

FGExatamente. Para além disso, nós continuamente introduzimos melhoramentos. O site mudou quatro ou cinco vezes desde 2004 -- foi crescendo o número de imagens e a forma como se visualiza também mudou. Recentemente pusemos fotografias em full screen e estamos neste momento a atualizar progressivamente o arquivo. Para além das fotografias temos também um mapa com a localização, o que permite a todos os estrageiros fazer um roteiro com as obras. O Últimas transformou-se em muito mais do que aquilo que eu antecipava…

PH – Uma vez que a biblioteca é aberta, as pessoas naturalmente utilizarão as imagens que lá estão. Qual é a sua perspetiva em relação à utilização do seu trabalho – a difusão, as colagens, as variações…

FG Não me importo nada! Irrita-me particularmente a proteção excessiva da marca de água ou o não poder cortar a fotografia só porque pode ficar mal cortada. Isso é uma constante de qualquer trabalho – também um arquiteto pode desenhar um projeto que no final é construído de outra forma.

Eu tenho um carinho especial por muitas fotografias e apesar de gostar de as ter feito, eu estou muito mais preocupado com o que vem no dia seguinte do que em meter uma marca de água. Uma fotografia feita há dois anos já fez o seu percurso. Por exemplo, lembro-me de há uns tempos ter visto uma fotografia que eu fiz posta no Tumblr por miúdos… a fotografia foi partilhada e apareceu em 50,000 sítios diferentes! Isso para mim é uma delícia! Não estava lá o meu nome mas não tem mal. Claro que eu não gostaria que a Coca-Cola utilizasse uma fotografia minha sem falar comigo mas eu acredito que o trabalho segue o seu caminho…

Quem não estiver preparado para a partilha hoje em dia está no negócio errado! Se eu vejo uma imagem minha aplicada em vários sítios sabendo que ao fim de 20,000 já não tem o meu nome, prefiro a qualquer marca de água. Não é a marca de água que me traz mais trabalho ou que altera o valor do trabalho. Quem liga a isso está preso ao passado.

PH - A democratização dos meios é o sentido da História. A propriedade é antes do mais uma manifestação de medo.

FGSim, além de que uma marca de água tira a atenção da fotografia… é um contrassenso.

PH - É também uma questão de atitude em relação à educação do público.

Sim. Nas Últimas Reportagens temos 40,000 fotografias e o repertório continua a crescer. É uma capsula temporal. Esta biblioteca não é uma história de miúdo que faz isto enquanto não faz outra coisa; eu não quero voltar a projetar e este é o meu legado. Eu vou fazer isto até cair para o lado, ou se calha caio para o lado a trabalhar nisto (risos), mas esta biblioteca estará sempre online. Quem me contrata sabe isso. Por outro lado, estou sempre atento à tecnologia- aliás estamos em todas as plataformas, Pinterest , Instagram, etc. O Instagram faz parte do meu dia-a-dia.

Casa em Alcobaça / Aires Mateus. Image © Fernando Guerra | FG+SG

PH – Esse diálogo com o tempo tem uma aproximação ao cinema?

FG Eu gosto de contar histórias. Há muitas reportagens minhas que podiam dar uma história.Eu tenho de uma forma não declarada uma pequena narrativa para cada projeto. Tiro fotografias do amanhecer à noite – um dia na obra – e esses apontamentos de narrativa solta deixam que cada um possa construir a sua história.

As pessoas das minhas fotografias são como atores e as casas são como um palco. É assim eu olho para o meu trabalho: uma narrativa aberta.

PH - Cinéfilo?

FG – Eu vejo muita coisa… mas não são só filmes, eu estou atento a muita coisa que me rodeia. Apesar de não ter nomes para dar tenho todos os dias uma rotina de café da manhã em que vejo fotografias que me interessam.Consumo blogs, Instagram, fotografias de amadores… Alias, eu sinto-me 100% amador! Eu continuo a fotografar com o mesmo encantamento que tinha aos dezanove anos!

Nós somos bombardeados com tanta imagem que é difícil dizer que há artes que me alimentam mais que outras. Alias, para além da fotografia eu sou um apaixonado por automóveis! Tenho portanto um universo bastante dilatado… Por exemplo vou lançar agora uma linha de acessórios por artesãos portugueses.

Temos de ser abertos a tudo. Quando eu comecei o Últimas Reportagens em 2004 estava aberto a tudo, aberto a misturar tecnologia e tradição e foi isso que me deu retorno. Nesta linha de acessórios que estou a fazer o processo é semelhante.

PH- O seu processo tem evoluído?

FG – Quando eu comecei a fotografar obrigavam-me a utilizar slides gigantescos e rolos de dez fotografias. Era caríssimo! O meu fascínio com as máquinas não tem apenas o lado encantado da inspiração mas sobretudo revela a tentativa de descobrir o que fazer com o equipamento que existe; porque são possíveis coisas que antes tecnologicamente não eram.

Ter acompanhado a mudança da fotografia analógica para a digital foi muito interessante. Em 2001 ninguém fotografava com 35mm porque todos tinham bancos óticos e grandes máquinas. Por outro lado, eu só tinha uma Pentax 6:7 gigantesca com punho em madeira e usava essencialmente máquinas pequenas. Daí as minhas fotografias serem tão móveis! Os outros fotógrafos tinham chapas enormes e é difícil correr atras de um cão ou de um gato com máquinas grandes… Eu com uma máquina pequena, como a Leica, dei-me muita liberdade, fotografei de uma forma mais solta, como uma fotografia de viagem e de rua. No fundo, eu transpus o registo de viagem para a fotografia de Arquitetura.

Reconheço como um momento marcante aquele em que fiz uma fotografia para o Gonçalo Byrne na reitoria de Aveiro. Quando olhei para essa fotografia percebi que podia ser muito divertido. Estavam lá todos os elementos que queria e que definem o instante decisivo. Era a fotografia de uma escada, com pessoas em vários sítios e várias camadas de informação que a tornavam única. Pensei “isto pode ser feito de outra maneira, desta maneira” e assim começou. Eu tenho um saco ou cinto com meia dúzia de lentes e gosto de estar num canto e ver a vida a acontecer. Invisível. Interessa-me perceber o ritmo das pessoas, o edifício a respirar e captar esses momentos. Interessa-me a vida.

PH – A exposição "Aircraft carrier" na Storefront e', penso, uma continuação do pavilhão Israelita em Veneza em 2012. Como surgiu esse trabalho?

FG Para mim a graça maior do trabalho é ter sido importado para o outro lado do mundo onde existem imensos fotógrafos… Vieram, portanto, ter comigo para participar nesse projeto para a Bienal de Veneza. Eu não estava envolvido no pavilhão de Portugal e ia aparecer com um destaque enorme no pavilhão de Israel. Era uma exposição minha sobre um país que não conhecia com pessoas que não conhecia… o processo foi maravilhoso!

Bienal de Veneza 2012: "Aircraft Carrier " - Pavilhão de Israel. Image © Fernando Guerra | FG+SG

PH- Todos temos uma bagagem cultural mas a nossa perspetiva da vida não é um passaporte e esse foi um reconhecimento individual da sua perspetiva.

FG - Pois é. Isso faz-me sentir bem. Quando eu comecei valorizava muito trabalhar com estrelas da Arquitetura mas hoje estou no polo oposto. Essa expectativa de trabalhar com os Grandes da Arquitetura desapareceu; eu tenho ganho imenso a trabalhar com gente jovem, com quem eu converso, almoço e regresso ao trabalho. Temos uma comunhão de objetivos e isso tem mais valor do que trabalhar com alguém famoso. Eu gosto de trabalhar com gente que me faz crescer.

Há recompensas em trabalhar com pessoas como os Likearchitects Eles estão a crescer e eu estou a acompanhar esse percurso fotografando; ao mesmo tempo tenho fotografias incríveis dos trabalhos deles, umas das quais foi a capa da Smithsonian em Dezembro de 2013, uma revista com uma tiragem de perto de 2 milhões de exemplares, onde a minha filha foi capa da revista! É uma coisa muito especial!

LEDscape / LIKEarchitects. Image © Fernando Guerra | FG+SG

Créditos: Joana Pacheco. “Decisive Moment” 17 Março de 2014. Visite: Paperhouses

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Sobre este autor
Cita: Joanna Helm. "Instante Decisivo - uma conversa com Fernando Guerra" 19 Abr 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-183934/instante-decisivo-uma-conversa-com-fernando-guerra> ISSN 0719-8906

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