O que não li / Josep Quetglas

1. Os supérfluos

Escrevo contra a crítica e os críticos de arquitetura. Para promover o desejável desaparecimento desse gênero literário e dessa ocupação. É um mínimo esforço que se requere: o público já não as lê. Bastaria que os editores se atrevessem a prescindir da publicação de críticas intercaladas entre as obras que apresentam, para que não notássemos sua ausência. É possível, está ao alcance, mas alguém precisa se atrever a ser o primeiro. Não publicar mais críticas de arquitetura. Se limitar (se limitar?) a apresentar obras e projetos por si mesmos, incluindo no «por si mesmos» a opinião ou o silêncio do seu autor.

Penso em termos darwinistas. Antes de desaparecer, os órgãos supérfluos, que não participam na vida ativa do indivíduo, que se tornaram inefetivos, emascaram sua superfluidade e exibem uma última grandiosa grandiosa expansão como ornamento. As críticas de arquitetura são, hoje, uma tal flambada. São um gênero ornamental, um gênero literário de acompanhamento. Mas isso sabemos que amanhã não existirão.

Vai um exemplo:

Numa monografia sobre um arquiteto, de cujo nome não quero me lembrar, figura uma introdução crítica na que vão citados os seguintes nomes próprios:

«Fra Angelico. Aragon. Bataille. Yves Bonnefoi. Breton. René Clair. Chinchilla. De Chirico. Georges Didi-Huberman. Max Ernst. Gaudí. Alberto Giacometti. Goya. Richard Hamilton. Edith Helman. Michael Heizer. Rosalind Kraus [sic]. Tommaso Landolfi. Leonardo da Vinci. Antonello de Mesina. Leiris. Joan Rubió i Bellver. Seabrook. Allison [sic] e Peter Smithson. Sthendal. Tanguy».

Desafio a qualquer um que deduza, desde essas citas, de quem se está falando, a que arquiteto está dedicada a monografia.

Prove-se. Me calo durante um par de linhas, que deixo em branco, enquanto se volta a ler a lista anterior.

 

 

 

Saiu? Não? Ou, melhor, sim, sim saiu: o crítico está falando de e para si mesmo. Assistimos ao monólogo do crítico, entoando numa meia voz suficientemente alta como para ser ouvido pelos vizinhos. Quanto sabe! Como nos surpreende! Nunca nos haveria ocorrido tanto!

É verdade que o único que rastrear com esses nomes é a biblioteca e os gostos do crítico? Porque a resposta é única: em realidade não se está falando de nenhum arquiteto, de nenhuma obra, sino que, simplesmente, o crítico faz ouvir sua voz ———-o crítico, que escuta fascinado sua própria voz, intransitiva, rosnando impostada de citas-.

Todo crítico de arquitetura é, estritamente, independentemente de sua simpatia, qualidade e conhecimentos, um impostor, que nos dá gato por lebre, que se dá a si mesmo em troca de outro, que suplanta o objeto autêntico de nosso interesse, que não é senão o arquiteto e sua obra, e o substitui por sua própria pessoa, por sua mesma cultíssima «fantasia».

«Cultíssima fantasia» quer dizer, aqui, fantasia fabricada desde a cultura, quixotescamente, a partir de citas do lido, não a partir da experiência do vivido.

Loos havia escrito que, em seu tempo, para ser arquiteto só fazia falta dispor de uma boa biblioteca. Com livros, revistas e papel em branco estava garantido o abastecimento de detalhes ornamentais e de estilos artísticos para aplicar aos encargos. Assim segue trabalhando ainda hoje em dia o crítico. «Que vou falar de um quartel de bombeiros em Santander? Bem, deixe-me ver o que estou lendo ultimamente, a quem posso por uma cita… Lord Carnavon, algum bailarino «minimalista», fotos de meninas de Lewis Carrol e Ícaro se aproximando muito do sol, pelo fogo. Isso irá bem para começar. E logo…»

São os supérfluos. Nossos artistas da prosa crítica aplicada.

Necessitamos uma crítica de arquitetura, um modo de interpretar e ver para melhor projetar e fazer arquitetura. Se os críticos de arquitetura se dedicassem a varrer as ruas ou a entreter soirées em atos de sociedade já a teríamos.

Não insisto mais. A casa qual o seu. Quem se satisfaz com o decorativo, com a impostura, estão em seu direito e tem onde escolher. Bom proveito. Só recomendo a leitura de um texto de Helio Piñón, com quem me encontro surpreendentemente a favor nessa ocasião. Em «As palavras e as obras», publicado no número 12, dedicado a -lubetkin, da revista DPA, do Departamento de Projetos das Escolas de Barcelona e do Vallés, Helio escreve:

«O texto [que acompanha as obras] raramente é hoje do autor da obra: em geral, se confia a apresentação dos trabalhos ao colega com mais lábia ou ao crítico com mais notoriedade na imprensa especializada. Se institui assim a coexistência de dois mundos inseparáveis mas alheios: o das obras e o de seus protetores. Umas e outros, fingindo sossego, dão vida a seu personagem como podem, se encontrando em tessituras que os sobrepassam. O comentário -melhor se é extenso e está trufado com referências estrambóticas- deixa fora de dúvidas que o publicado é coisa séria, por muito que seu aspecto a princípio convide a duvidar. O texto acaba sendo desse modo um espaço de repouso cuja textura fina e cinzenta nos ajuda a nos repor entre um sobressalto e o seguinte».

Só discordo da negativa valorização que Helio faz dos projetos: não têm porque ser todos eles um sobressalto. O resto, subscrevo.

Assim, se qualquer comentário é ou uma suplantação ou uma interferência, não pode se escrever de arquitetura? Não exatamente, não se pode escrever acerca de arquitetura em ativo. Nesse caso, são só os próprios autores quem têm o direito a escrever acerca de sua obra. Melhor dito: qualquer coisa que escrevam é, bem lida, um comentário acerca de sua própria obra, nos recitem um estado de medições, inventem um sonho recorrente de seu verão infantil ou se calem.

Dou outro exemplo, este hipotético:

Suponha que encontre, casualmente ou depois de uma busca, duas páginas da mão de Coderch sobre sua casa na Barceloneta, meia frase de Mies sobre o Pavilhão, sete palavras de Le Corbusier sobre as casas Jaoul e, ao lado, um artigo contemporâneo de um erudito crítico contemporâneo titulado «Projeto e contexto no primeiro regionalismo crítico», outro sobre «Sondas do laberinto: dobras, desterritorialização, lugar», e um terceiro sobre «O plano e o profundo: Duchamp, Le Corbusier e o senão do século do signo». Que leria com avidez e que afastaria como uma suspeita vazia?

A cinqüenta anos de distância, está claro. Daríamos qualquer coisa para encontrar a voz direta dos autores. E afastaríamos, como resíduos sem interesse de outros tempos, documento só de modas passadas, os textos dos críticos. Pois se trata só de nos adiantar ao trabalho dos próximos cinqüenta anos. O que dentro de cinqüenta anos careça de interesse, já carece de interesse agora.

2. Feito e dito

Qualquer juízo é sempre um ato injusto. Dar juízo é acentuar desde fora uns aspectos da obra, afastar outros. Não há juízo que não manipule a obra julgada, que não a apresente alterada, tanto se valoriza a obra em si como se se comparam várias, para escolher a «melhor». Comparar começa reduzindo as obras a termos comuns, eliminando sua diferença, sua identificação.

Contra a injustiça do juízo não está a renúncia a julgar, senão a renúncia a chegar ao veredito. Há que saber preferir um julgar interminável, que nunca acabe de ir considerando novos aspectos da obra, de ir acrescentando referências.

Um juízo é uma análise onde o objeto analisado fica considerado desde os valores e intenções próprios do analista. O analista os mostra, permite ver que ele tem corpo, opinião, critérios determinados.

O resultado do juízo está mais em pôr em relevo o corpo, opinião e critério do juiz, que em identificar o julgado.

Os objetos que, em nosso caso, nos interessam têm em comum ser discursos referidos à arquitetura. Por «arquitetura» entendemos de momento a atividade dirigida à construção ou constituição de lugares adequados a atividades humanas. Por «discurso» entendemos linguagem verbal, escrituras de palavras.

As arquiteturas são situações de fato: duras, materiais, opacas. Os discursos, as palavras, são mais leves, e tratam de se adaptar às arquiteturas, como gases ou forros sem acabamento, para restituir ou fazer aparecer a forma do moldado. O discurso tira o molde da arquitetura, a expressa, porque registra e fixa a pressão que faz a obra contra essa superfície macia e maleável do envoltório de palavras.

Só se pode tirar o molde de coisas sólidas, concretas, objetuais. Um discurso sobre idéias, conceitos ou palavras seria como querer envolver fumaça em fumaça. Todo discurso que não vá referido a um núcleo sólido, que trata de fazer ver, é informe.

Para os filósofos ou poetas, as palavras também são fatos, e eles sim podem usar palavras para falar de palavras. Mas para os arquitetos as palavras não são fatos, senão instrumentos práticos, nunca problemáticos, nunca interessantes, com os quais tratar de aquele único problemático, para eles: os próprios fatos da arquitetura.

O discurso referido à arquitetura há de ser em linguagem lisa. Nenhuma especialização de jargão, nem filosófica nem arquitetônica, é adequada, por quanto imporia seu frisado e nervura ao molde que se trata de obter. A pasta para moldes é sempre macia e neutra. Todas as dobras e grãos pertencem ao corpo que há debaixo.

Texto original em espanhol: Josep Quetglas (Artículos de ocasión, GG, 2004) / Tradução: Igor Fracalossi

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "O que não li / Josep Quetglas" 12 Jan 2012. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-19146/o-que-nao-li-josep-quetglas> ISSN 0719-8906

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